sábado, 8 de setembro de 2018

Vida acadêmica: da aridez e das consolações


1. A necessidade da inquietação e do engajamento acadêmico

Vivemos em um mundo diferente do mundo antigo. A contemporaneidade, com todas as suas complexidades, traz desafios novos. Refiro-me, especificamente, ao caráter cumulativo da História. É inevitável que, com o passar dos tempos, ideologias e conceitos se acumulem no caldo cultural da sociedade, trazendo necessidades cada vez mais complexas ao pensamento. Esse é um desafio para o filósofo cristão. É também um desafio para o cientista, para o pensador identificado com a cristandade.

Se eu fosse definir quais são as principais características da comunidade cristã atual, uma delas seria o que poderíamos denominar distração crônica. Há uma certa indolência e um torpor característico que permeia a comunidade cristã. Vivemos em uma época de complexos desafios, mas aqueles que se identificam com o cristianismo parecem, de alguma forma, absortos em suas próprias idiossincrasias, valorizando mais o entretenimento do que a cultura, mais a busca do próprio bem-estar do que o incômodo e a reflexão. Diante dos desafios que a comunidade cristã esperam, podemos perguntar: onde está o incômodo?

Pensar, refletir, é inquietar-se. É olhar com misericórdia para os problemas do mundo, é sentir-se desafiado a responder às principais questões do pensamento que desafiam a comunidade.

Diante disso, é norteadora a frase do filósofo cristão contemporâneo William Lane Craig: “Não é suficiente focar em entretenimento e pensamentos devocionais bobos nos grupos de jovens e escolas bíblicas. Temos que treinar nossos filhos para a guerra. Não podemos enviá-los para o ensino médio e para a universidade armados de espadas de borracha e armaduras de plástico. O tempo de brincar já passou” (1)

Se você considera essa frase pouco espiritual, insensível ou arrogante, talvez ainda não tenha percebido o que está em questão. Tudo isso tem a ver com um pouco do que estamos escrevendo nesse artigo: a necessidade de o cristão caminhar na aridez do universo do pensamento e da cultura. Um universo onde, na maioria das vezes, não encontrará nada de Jesus e nada referente às consolações que o cristão pode encontrar, por exemplo, em sua comunidade. Mas é um caminho necessário.

Quando Jesus, na oração sacerdotal, pede ao Pai: “Não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno” (Jo 17.10), é inevitável aplicarmos isso ao caráter engajador do academicismo cristão: não basta que existam líderes de louvor e pastores; é necessário que haja também cristãos comprometidos com a defesa do pensamento cristão na academia, e que não façam essa defesa em nenhum dos extremos, a saber, o do fundamentalismo cômodo (que é a incapacidade crônica de renovar a linguagem) ou do liberalismo cômodo (a incapacidade de manter um pensamento que seja coerente com a História), mas na lucidez cêntrica de uma ortodoxia engajada com a necessidade de renovação da linguagem (sem abandonar os princípios) e da apreensão do sentimento da contemporaneidade.

Por que a filosofia, ao que parece, está se tornando tão popular atualmente? Porque as pessoas estão se dando conta de que a contemporaneidade pede por um sentido e, desistindo de encontrar sentido na religião, passam a buscá-lo no pensamento. Mas essa é uma necessidade também para a Igreja.

É certo que há muitas pessoas, entre os cristãos, que se interessam pela cultura e pelo pensamento, mas o fazem sem se preocupar com uma formação acadêmica e com o engajamento em uma carreira mais sólida, focada na formação árida e no aprofundamento das fontes. O meu incentivo e o meu convite é que essas pessoas não se contentem com o autodidatismo, mas que enfrentem, com coragem, a necessidade de aprofundar-se com seriedade nos fundamentos históricos do pensamento, buscando uma maciça formação, quer seja em ciências naturais, quer seja em ciências humanas. É necessário que surjam pensadores e cientistas cristãos às centenas. Pois já existe muito sério engajamento na Teologia, tanto bíblica quanto sistemática, mas há poucos cientistas, pensadores, filósofos, historiadores, antropólogos, sociólogos, geógrafos, cientistas da religião, psicólogos, pedagogos, jornalistas, literatos, psiquiatras, neurologistas, matemáticos, físicos, cosmólogos, químicos, bioquímicos, biólogos, arqueólogos cristãos.

Ao chegarmos nesse ponto, é inevitável a reflexão: o que é, exatamente, um pensador e um cientista cristão? É simplesmente alguém graduado em uma área específica do pensamento e que frequenta a igreja? Obviamente, trata-se de algo muito distinto disso. Um pensador e um cientista cristão, no sentido estrito, é um teólogo que somou à Teologia uma área específica da ciência e do pensamento humano. Alguém que percebeu que a sua vocação não é produzir uma teologia que seja apenas para a Igreja. Ele é também um evangelista na área acadêmica, alguém que percebeu a importância da teologia também no campo da cultura, da ciência e do pensamento secular. Alguém deve influenciar essa cultura, que é secular, tornando-a mais conforme Jesus, conforme os ensinamentos da Igreja. Ele não impõe os ensinamentos da Igreja, mas é alguém que convence pelas regras do pensamento e da lógica. Ele também está imbuído de uma espiritualidade que é desconhecida desse mundo. Desconhecida também do pensamento da nova era. E o que são os ensinamentos da Igreja? A teologia da prosperidade, enriquecer às custas das pessoas, a Inquisição, as Cruzadas, a ostentação, a imposição, o moralismo, o legalismo, o fanatismo, o mundo do êxtase irrefletido e das sensações? Nada disso tem a ver com a essência da Igreja (2). O ensinamento da Igreja é a vida e os ensinamentos de Jesus de Nazaré.

Portanto, são necessários certa dose de discernimento vocacional e de coragem para adentrar a aridez da vida cristã acadêmica. É necessário também, como diremos mais adiante, certa dose de inspiração e originalidade. Criatividade. É preciso coragem para guerrear dentro da arena do pensamento, não se apequenando, sem ser pusilânime, mas igualando-se com os grandes espíritos da História, enfrentando os principais pensadores do mundo ocidental, aprendendo e dialogando com eles mas, principalmente, opondo-se àquilo que é contrário à essência dos ensinamentos de Jesus, a maior luz que já surgiu na História, inabalável, inigualável.


2. Ortodoxia, originalidade e especialização

Assim diz o filósofo cristão contemporâneo Alvin Plantinga: “Primeiro, filósofos e intelectuais cristãos devem demonstrar mais autonomia – mais independência do resto do mundo filosófico. Segundo, filósofos cristãos devem mostrar integridade – integridade no sentido original da palavra, ser um inteiro. Talvez ‘integralidade’ fosse a melhor palavra aqui. E necessário aos dois há um terceiro: coragem cristã, ou ousadia, ou força, ou talvez auto-confiança cristã” (3).

O que quer dizer tudo isso? Significa, exatamente, a necessária coesão entre dois elementos que podem, à primeira vista, parecer opostos, mas são indissociáveis: ortodoxia e originalidade. Ora, de acordo com o senso comum, ser cristão é ser necessariamente reacionário, algo que se opõe à originalidade. Quem pensa assim não conhece a fundo as raízes do pensamento cristão.  O cristianismo, desde as suas origens, perseguido inicialmente pelos imperadores romanos, tem o que pode ser considerado de mais original e subversivo. E mesmo na era medieval, quando torna-se finalmente cultura, não perde sua força e originalidade. O elemento essencialmente sacro, os conteúdos da arte sacra, que se estendem à modernidade, a mística esponsal da era de ouro, a espiritualidade espanhola do século XVI, os mosteiros como centros que irradiam espiritualidade e cultura, tudo isso são conteúdos essencialmente originais da cultura cristã, que inundou o ocidente e alcançou muitos corações que contemplam o Cristo que é exaltado entre as nações. Ora, é necessário, aqui, que esses elementos sejam considerados como o que há de mais original e que se opõem ao espírito do secularismo, e esse reconhecimento e essa identidade são exatamente a ortodoxia.

É indispensável que o pensador e o cientista cristão, ciente dessa cultura do qual a sociedade está impregnada – mesmo tentando a ela resistir –, mantenha-se fiel às suas raízes de forma original e ortodoxa, pois a ortodoxia – diferente do fundamentalismo – é a originalidade. É necessário, pois, que o pensador e o cientista cristão percorra um caminho próprio, distante do secularismo, e que caminhe na aridez, mas que nessa aridez lance raízes fundamentadas em uma cultura que, por ser essencialmente bela, jamais deverá ser esquecida.

Referimo-nos aqui, evidentemente, ao caráter místico e espiritual do cristianismo.

É necessário que o teólogo cristão se questione em qual área aprofundará a sua teologia, pois o olhar do pensador e do cientista cristão é, necessariamente, um olhar teológico. O pensador e o cientista cristão necessita, antes de tudo, ser teólogo. É preciso que ele aprofunde o discernimento vocacional e se questione: em que área do pensamento aprofundarei a minha teologia? Pois é certo que a teologia bíblica e a teologia sistemática não são as únicas formas de se exercer a teologia. Não é um caminho obrigatório. Deve-se assim, o vocacionado, questionar, se realmente a sua teologia será voltada apenas para os que estão do lado de dentro da comunidade cristã, ou se não há, em sua vocação, algum pendor para a atuação evangelística no sentido de contribuição para a formação cultural cristã da sociedade. Ou seja, a teologia que ultrapasse o biblicismo, que fale uma língua que o mundo entenda e diga respeito não somente à Igreja, embora em sua base esteja sempre se direcionando à Igreja.


3. Vida acadêmica: da aridez e das consolações

Existe um caminho que é necessariamente o da solidão acadêmica e no qual se abraça a aridez não por conforto, mas por vocação. Trata-se de um caminho distante do mundo dos louvores, das mãos estendidas, em alegria, aos céus, e da doçura das consolações encontradas na comunidade. Um mundo mais próximo do que o cristão tem a dizer ao mundo na segunda-feira do que do que tem de receber da comunidade no domingo festivo. O mundo do pensador e do cientista cristão é um mundo de solidão e aridez necessários. Um mundo em que se caminha no deserto por amor a uma causa. É, esse pensador e cientista cristão, necessariamente, um idealista. Mas é também um realista. Ele tem em Deus a sua fonte de experiência mais concreta. E por causa dessa concretude, ele consegue, distante das consolações comunitárias, caminhar na aridez. Mas essa aridez e esse deserto serão também a sua verdadeira fonte de consolação.

Trata-se, aqui, da necessidade de ser capaz de extrair, do que é aparentemente árido e infértil, a consolação necessária, pois é caminhando na aridez do pensamento secular que encontrar-se-ão as bases para demolir tudo aquilo que inutilmente tentou erigir o mundo: um monumento aparentemente gigantesco, mas de bases frágeis, insuficientes para derrubar aquilo que a Igreja sabiamente construiu através dos séculos. Só conseguirá demolir essas estruturas, que perceberá como frágeis, se aventurar-se a conhecer profundamente o que o academicismo secular construiu com o passar dos tempos, em oposição à sólida filosofia da Igreja e ao pensamento teísta mais profundo.

A Igreja possui uma filosofia sólida, mas há ainda muita dispersão e diversidade de pensamentos. É preciso um conhecimento que atravesse todas essas filosofias para que alcance um pensamento, uma síntese ainda não encontrada. É necessário que o filósofo cristão caminhe na aridez, busque uma formação sólida e respeitável, aprofunde-se, especialize-se, conheça em profundidade as raízes que tecem as linhas das danças constantes das marionetes. Que conheça em profundidade também tudo o que foi produzido de sólida filosofia cristã e teísta. Trata-se de um engajamento constante, de um afastar-se das consolações dominicais e dos devocionais infantis.

Isso não significa que abandonará a espiritualidade, tampouco a comunidade, a Igreja. Não há sentido em fazer tudo isso deixando a Igreja; não é disso que estamos tratando aqui. Estamos tratando, antes, de uma solidão desconhecida, necessária e pouco compreendida, mas que não esteja demasiadamente distante da comunidade. É preciso estar alicerçado na comunidade, mas sem grandes projeções e apego. É necessário que se dedique à vida devocional, mas que não seja alicerçada em uma experiência infantil, mas em uma sólida leitura e caminhada de espiritualidade fundada nos místicos da Igreja.

Uma misteriosa solidão acompanha o vocacionado, tanto o místico quanto o filósofo. É indispensável aprender a caminhar sozinho e é necessário extrair a consolação dessa aridez. É preciso se adaptar a isso.

As consolações que brotam do Espírito Santo não têm fim. Elas se mostram renováveis, mesmo nos momentos mais desérticos, mesmo em meio à noite escura, a ditosa noite escura, conforme João da Cruz.

Depois de trilhar um longo caminho, adquirirá a independência e a fortaleza necessária para erigir um pensamento e uma ciência que tenham algo a dizer ao mundo. Esse é o nosso conselho e o nosso encorajamento: cristãos, formem-se em filosofia, formem-se em ciências. Busquem a especialização. Transformem o mundo.


Bibliografia

(1) CRAIG, William Lane, Quem Precisa da Apologética Cristã

(2) CRUZ, Anderson Francisco da, A Natureza da Igreja

(3) PLANTINGA, Alvin, Conselho aos Filósofos Cristãos

domingo, 3 de junho de 2018

Os caminhos da filosofia cristã contemporânea

Na filosofia cristã, não basta que se discorra sobre Deus com raciocínios originais e plausíveis. É preciso que a presença de Deus esteja onipresente, e que as páginas do texto estejam impregnadas do Espírito Santo. Nesse sentido, alguns dos filósofos cristãos modernos mais conhecidos parecem ter tomado um rumo incerto na História. Fala-se sobre Deus com alguma originalidade e apreensão do sentimento da contemporaneidade – o que é sumamente importante em filosofia –, mas perde-se o significado e a essência.

Nesse sentido, a safra de alguns destacados filósofos cristãos contemporâneos, que atuam em um âmbito notadamente lógico e apologético, tem muito mais a dizer à filosofia cristã do que os filósofos modernos mais famosos que os antecederam, cujas ideias foram mais aproveitadas pelos céticos do que pela comunidade cristã que anseia por águas vivas.

Assim, é importante combinar originalidade, racionalidade, capacidade de apreensão do sentimento da contemporaneidade com ousadia, ortodoxia e, principalmente, capacidade de não ser árido, secularizado e infértil. Isso é um desafio de grandes proporções, pois não é fácil reunir todas essas habilidades ao mesmo tempo. Muitos filósofos e teólogos discorreram sobre assuntos cristãos com originalidade e compreensão do sentimento de contemporaneidade, demonstrando a incrível e necessária capacidade de renovar a linguagem, mas não foram ao essencial e parecem, no caminho da História, ter se perdido. Outros, ao contrário, permaneceram ortodoxos e essenciais, mas caíram no erro do fundamentalismo, que é a incapacidade crônica de renovar a linguagem e de apreender o sentimento de contemporaneidade, o que os torna incompreensíveis aos que vivem no mundo atual, uma sociedade tão diferente do mundo antigo.

Quais filósofos cristãos reuniram todas essas habilidades necessárias aqui apontadas? Poucos o fizeram.

É preciso também que se rompa com os filósofos seculares modernos, e que se deixe de ser influenciado por aqueles que pouco têm a contribuir para a estruturação de um pensamento cristão original e relevante. Pois se a filosofia e a teologia cristã desenvolvidas forem “mais do mesmo”, que importante contribuição original darão ao mundo? Há, entre os cristãos, potencial para se desenvolver muito mais.

O fato de os citados filósofos cristãos modernos terem se perdido na História pode talvez ser explicado pelo fato de não terem vivido em uma época fácil para o Cristianismo. A comunidade cristã recebeu um grande golpe, e o humanismo radical então vigente tornou quase impossível à filosofia cristã um pensamento sereno e lúcido. Hoje, com o distanciamento do tempo, é possível, em retrospectiva, lançar um olhar mais lúcido e sereno sobre a História, e produzir uma filosofia que se oponha radicalmente à ruidosa filosofia ateísta, que é destituída de solidez metafísica e carece de sentido. Isso pode explicar, em parte, o aparente fracasso da filosofia cristã moderna, ainda que ela tenha o seu lugar e importância relativa na comunidade cristã por ter permanecido, mesmo que de forma desajeitada, corajosamente teísta.

Hoje, em filosofia cristã, a apologética está na ordem do dia, e há pensadores atuais que têm se demonstrado gigantes do pensamento ocidental, o que é uma constatação agradável às expectativas cristãs. Mas é necessário que a filosofia cristã não se limite à apologética. É necessário também que haja um maior aprofundamento na espiritualidade, bebendo-se dos místicos – essa é a necessidade maior de todas –, e que se desenvolva uma filosofia voltada para as demandas do sentimento da contemporaneidade, erigindo uma sólida Filosofia da História e uma leitura sociológica puramente filosófica.

É necessário que a filosofia cristã torne-se relevante como nunca foi antes. É preciso superar Agostinho e Tomás de Aquino. Será isso possível? Sejamos otimistas. Se a religião cristã é essencialmente escatologia, por que a filosofia cristã precisa viver do passado? Por que Agostinho e Tomás de Aquino não podem ser superados? É preciso que a filosofia seja estimulada nas instituições cristãs como nunca foi outrora. É necessário que as igrejas, a escola dominical, os colégios e as faculdades cristãs sejam centros sérios de formação em ciências e em filosofia. Se não existem instituições assim, é necessário que sejam criadas. É preciso que pensadores cristãos surjam às centenas. E é urgente que, assim como existem inúmeros pastores, ministros de louvor e teólogos bíblicos comprometidos com a cristologia, também haja, do mesmo modo, vários cientistas e pensadores, e não poucos estandartes, que caminham incompreendidos, solitários e cansados, na árdua tarefa de anunciar uma mensagem que é pouco compreendida pelos céticos, porque falam outra língua, e também pouco compreendida pela maioria dos cristãos, porque pouco se interessam pela apaixonante e árdua missão acadêmica.

O Brasil vive atualmente um período sem precedentes de divulgação popular da filosofia. Vivemos também uma era em que as pessoas clamam por espiritualidade e, desconhecendo a profundidade da mística cristã, aderem a espiritualidades rasas e alternativas. É preciso utilizar toda essa conjuntura a nosso favor. Aos místicos e às profundidades da filosofia! João da Cruz, Teresa de Ávila, e tantos outros, devem ser cuidadosamente estudados e compreendidos. E é preciso um olhar crítico sobre a contemporaneidade, que seja profundamente acadêmico, mas também profundamente enraizado nas águas profundas do Espírito Santo.

Jamais existiu, na verdadeira filosofia cristã, contradição entre razão e espiritualidade. Isso é um mito moderno. Basta ler, por exemplo, Confissões, de Agostinho, e perceber-se-á a coesão nítida e profunda entre devoção e racionalidade.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A natureza da Igreja


Introdução

Tenho conversado constantemente com diversas pessoas a respeito da realidade do Cristianismo e da Igreja. Nessas minhas conversas, tenho notado que existe muita confusão e muitos mal-entendidos em relação à natureza e os propósitos do Cristianismo no mundo.

Em um dos meus recentes diálogos, foi levantada a hipótese – por alguns defendida – de que os cristãos nunca seguiram o que Jesus pregou. Segundo essa hipótese, a pobreza, por exemplo, recomendada por Jesus ao jovem rico – “vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres” – jamais foi vivida por qualquer cristão, mas são seguidas pelos hinduístas e budistas, por exemplo.

Foi, inclusive, citada a frase de Nietzsche na qual ele afirma que Jesus foi, na realidade, o único cristão que existiu – “o único cristão morreu na cruz”.

Em relação ao Budismo e ao Hinduísmo, não é acertado afirmar que todos os seus seguidores são pessoas que vendem os seus bens e os distribuem aos pobres, ao contrário dos cristãos. O Hinduísmo e o Budismo estão entre as maiores religiões do mundo – cerca de 851 milhões e 375 milhões, respectivamente –, e seria pueril considerar que todos esses seguidores vendem seus bens e os distribuem aos pobres, enquanto, na realidade, nenhum cristão jamais distribuiu seus bens a seus semelhantes.

Na realidade, em relação às religiões orientais, o que existem são grandes clichês e estereótipos. Como escrevi em meu texto A necessidade de uma Filosofia Mística para os dias de hoje (Primeira Parte), muito fala-se em Buda, Allan Kardec, Paulo Coelho e Dalai Lama, mas não se conhece os escritos de místicos cristãos como Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux e João da Cruz. No caso das religiões orientais, elas são admiradas por alguns motivos específicos. Primeiramente, por causa da massiva propaganda da mídia, que é sutilmente hostil ao Cristianismo, e exalta as religiões orientais por causa do movimento da Nova Era. Em segundo lugar, porque é próprio dos seres humanos possuir admiração por aquilo que lhe é distante e desconhecido. Aquilo que nos é familiar soa trivial, e o que está a distância atrai pois, por estar distante de nossos olhos, não vemos suas disfuncionalidades e equívocos. Em terceiro lugar, porque a espiritualidade mística cristã mais profunda permanece, pela esmagadora maioria, desconhecida.

Em relação a Nietzsche – o mais teimoso dos niilistas – considero desastroso que ainda seja levado a sério. É interessante o comentário que Anthony Kenny, em seu livro de história da filosofia, faz a seu respeito: “Não seria filosófico considerar a insanidade final de Nietzsche como razão para desconsiderar a sua filosofia; mas, por outro lado, não é fácil sentir muita piedade por alguém que considerava a piedade a mais desprezível das emoções”1. E é importante, aqui, ressaltar que Anthony Kenny é um filósofo ex-cristão agnóstico. E Nietzsche – como a maioria dos críticos do Cristianismo – não conhecia nada de História da Igreja

Obviamente, Nietzsche está equivocado. Mas há a também conhecida frase de Gandhi: “Eu gosto de Cristo... mas não de seus cristãos”. Será que, realmente, os cristãos não têm seguido o que Jesus ensinou, ao longo da História? É o que veremos, historicamente, ao longo desse texto.

Antes de abordarmos o importante papel social dos cristãos ao longo da História da Humanidade, e a importância fundamental da Igreja, iremos tratar de um conceito eclesiológico importante para entender a real natureza dos cristãos e da Igreja de Cristo.


Entendendo a natureza da Igreja

É salutar destacar que a relação entre Jesus e seus discípulos é muito diferente da relação comum que existe entre um mestre religioso moral qualquer e seus seguidores. Muitas pessoas tendem a achar que Jesus foi um mestre moral importante e isolado na História, que não foi muito compreendido e que falhou em deixar seguidores. Em relação a isso, é importante destacar o perspicaz comentário do insigne filósofo protestante C. S. Lewis: “Tento aqui impedir que alguém diga a grande tolice que sempre dizem sobre Jesus Cristo: ‘Estou pronto a aceitar Jesus como um grande mestre em moral, mas não aceito sua afirmação em ser Deus.’ Isto é exatamente a única coisa que não devemos dizer. Um homem que foi simplesmente homem, dizendo o tipo de coisa que Jesus disse, não seria um grande mestre em moral. Poderia ser um lunático, no mesmo nível de um que afirma ser um ovo pochê, ou mais, poderia ser o próprio Demônio dos Infernos. Você decide. Ou este homem foi, e é, o Filho de Deus, ou é então um louco, ou coisa pior… Você pode achar que ele é tolo, pode cuspir nele ou matá-lo como um demônio; ou você pode cair a seus pés e chamá-lo Senhor e Deus. Mas não vamos vir com aquela bobagem de que ele foi um grande mestre aqui na terra. Ele não nos deixou esta opção em aberto. Ele não teve esta intenção.”2

A relação entre Jesus e os seus discípulos é essencialmente diferente da relação entre os demais mestres religiosos – Zoroastro, Lao-Tsé, Confúcio, Sidarta Gautama, Maomé, Allan Kardec – e os seus seguidores. O relacionamento místico entre Jesus e os cristãos é de origem sobrenatural e está relacionado ao mistério que existe na espiritualidade mais profunda daqueles que se relacionam intimamente com Cristo. Veremos como é expresso esse relacionamento nos ensinamentos do Cristianismo, a seguir.

Jesus identifica-se com a Igreja. Assim ele diz a seus discípulos:

"Aquele que lhes dá ouvidos, está me dando ouvidos; aquele que os rejeita, está me rejeitando; mas aquele que me rejeita, está rejeitando aquele que me enviou" (Lc 10.16).

Vemos, aqui, a indissociabilidade entre Jesus e a Igreja. Atacar a Igreja corresponde a atacar Cristo. Obviamente, devemos criticar aquilo que algumas instituições fazem erroneamente em nome da Igreja. Mas isso é diferente de atacar a Igreja em sua essência. Iremos clarear esse ponto mais adiante.

Jesus diz, ainda, que ele é a videira e que os seus discípulos são os ramos (Jo 15.1-5). Tal comparação entre mestre e discípulo inexiste em qualquer das outras religiões e seus fundadores.  A relação entre os cristãos e seu mestre é profunda, radical e misteriosa. Ela se dá em um nível espiritual, e não ético ou moral. Nessa mesma parábola, Jesus diz: “sem mim vocês não podem fazer coisa alguma” (Jo 15.5). Ou seja, o relacionamento entre Jesus e os cristãos não se dá apenas em nível conceitual e histórico, mas em nível dinâmico, vivo e atual.

É importante também destacar: Jesus deixou uma Igreja. Deixou-a como uma entidade viva e que cumpriria o seu propósito até o fim. Vemos isso em seu colóquio com Pedro: “E eu lhe digo que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não poderão vencê-la” (Mt 16.18).

De acordo com a doutrina do Cristianismo, Jesus não é um simples mestre moral – embora em certo nível o passa ser – mas é o próprio Deus, o Logos encarnado e parte indissociável da Trindade, e não falhou deixando uma Igreja improdutiva e inútil para a sociedade. Veremos ao longo desse texto que a Igreja tem cumprido o seu papel na sociedade, embora, por causa da exposição negativa da mídia, e também por causa dos falsos cristãos, isso às vezes não pareça tão evidente, através de um olhar pouco profundo.

É preciso conhecer a História da Igreja. Sigamos adiante.

Na Escritura, a Igreja é apresentada também como Corpo Místico de Cristo:

“Cristo é o cabeça da Igreja, que é o seu corpo, do qual ele é o Salvador” (Ef 5.23).

“Ora, vocês são o corpo de Cristo, e cada um de vocês, individualmente, é membro desse corpo” (I Co 12.27).

Vemos, mais uma vez, como na Parábola da Videira, a íntima e misteriosa relação entre Jesus e os seus cristãos.

A Igreja é descrita também, nas Escrituras, como um templo espiritual do qual os cristãos são pedras vivas, e Jesus é a coluna principal (I Pe 2.4-6).

A Igreja é apresentada ainda como Noiva de Cristo (Ap 19.7-8).

O misterioso relacionamento entre Jesus e a sua Igreja é tão significativo que o próprio casamento é considerado, por Paulo, uma alegoria da relação entre Jesus e a Igreja. (Ef 5.29-32). Observa-se, aqui, que não é a relação entre a Igreja e Jesus que é considerada uma alegoria do relacionamento entre o homem e a mulher, mas, ao contrário, é o próprio casamento entre o homem e a mulher que é considerado uma alegoria de algo mais profundo: o relacionamento entre Jesus e sua Noiva.

Vemos, então, que a relação entre os cristãos e o mestre, Jesus, não é qualquer coisa. Existe uma dinâmica viva, sobrenatural e misteriosa.

A Igreja é mencionada, por Paulo, como o mistério que esteve oculto e que foi revelado, na História, aos anjos que o desconheciam, antes de ela ser revelada (Ef 3.8-11).

Pela Escritura a Igreja é considerada, ainda, “coluna e fundamento da verdade” (I Tm 3.15). Isso porque a única forma pela qual Jesus pode ser conhecido, após a sua Ascensão, é através da Igreja. E o que são os cristãos?

A palavra “cristãos”, do grego, significa “pequenos cristos”. Ou seja, aqueles que se parecem com Jesus. A primeira vez que os seguidores de Jesus foram chamados de cristãos foi em Antioquia, na Síria, nos tempos dos apóstolos.

É possível uma pessoa seguir os ensinamentos tão nobres e radicais de Jesus? De acordo com a Escritura e de acordo com a História, sim. Por quê? Por causa da pessoa do Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade. Após o encontro individual com Jesus, a pessoa que o encontra torna-se um cristão e Jesus passa a habitar nele, através do Espírito. Essa habitação é literal. A esse respeito, assim diz a Escritura.

“Respondeu Jesus: ‘Se alguém me ama, guardará a minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos nele morada’ “ (Jo 14.23).

“E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos seus corações, o qual clama: ‘Aba, Pai’ “ (Gl 4.6)

“Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20).

Vemos, assim, que a relação entre o cristão e Jesus é misteriosa, radical e viva. A espiritualidade de Jesus é profunda e apaixonante. E isto porque ele não é um mestre esquecido na História, mas uma pessoa atuante na História, uma pessoa viva que guia a História e manifesta-se à mesma através da presença ousada e significativa dos verdadeiros cristãos.


Diferença entre Igreja Invisível e as instituições

Existe uma diferença importante entre Igreja Invisível, que é o conjunto de todos os verdadeiros cristãos através da História, e as instituições que falam e atuam em nome da Igreja, mas que, sendo entidades humanas, são distintas do Corpo Místico de Cristo. Compreender essa diferença é essencial para entender a atuação da Igreja ao longo da História.

Como vimos acima, o mistério da Igreja é algo espiritual, vivo, dinâmico e orgânico. Essa Igreja é incorruptível (conjunto dos verdadeiros cristãos). Porém, para que ela possa atuar, surgem as instituições. Vemos, assim, surgir uma outra igreja, visível, institucional, humana. Com o passar do tempo, podem surgir (como de fato surgiram), ao longo da História, homens ímpios, falsos cristãos, que se apoderam das instituições, angariam poderes para si e realizam a impiedade em nome da Igreja e em nome de Deus. Enquanto esses homens realizam a impiedade, o conjunto dos verdadeiros cristãos continua a existir e a praticar a justiça e a piedade no mundo. Coexistem, assim, o joio e trigo, conforme a parábola de Jesus (Mt 13.24-30). Com o passar do tempo, vemos que as atitudes dos homens que se apoderam das instituições e realizam a impiedade são lembradas, enquanto os atos piedosos dos eminentes cristãos, que são como verdadeiras luzes na História da Igreja, tendem a ser esquecidos. Torna-se, assim, clichê, ao falar da História da Igreja, citar tragédias como as Cruzadas e a Inquisição católica e a Teologia da Prosperidade protestante, num chavão reducionista que desconhece a realidade hagiográfica dos santos católicos, ortodoxos e protestantes, e ignora suas nobres contribuições culturais, sociais e espirituais para o mundo.

A Parábola do Trigo e do Joio foi um aviso de Jesus de que dentro do Cristianismo o bem e o mal coexistiriam, e o fato de que surgiriam falsos líderes que atuariam impiamente em nome da Igreja está de acordo com as palavras de Paulo: “Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho. E dentre vocês mesmo se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair discípulos” (At 20.29-30).

Portanto, para compreender a História da Igreja é preciso discernimento histórico e entendê-la à luz das palavras de Jesus e de Paulo. Reduzir toda a História da Igreja a tragédias semelhantes às citadas é desconhecer a eclesiologia em sua essência e ignorar as luzes que brilharam e brilham no mundo, e que não deverão ser esquecidas.


A relação entre o Cristianismo e a pobreza – era apostólica

Existe uma relação muito estreita entre Cristianismo e pobreza. São diversos os textos bíblicos que tratam desse assunto. Não iremos expor aqui todos esses textos de forma exaustiva, mas separaremos alguns.

É possível constatar que os primeiros cristãos eram, em sua maioria, pobres, como demonstra, por exemplo, Tiago 2.5. O desprezo pelas riquezas, o abandono absoluto em Deus e a partilha dos bens eram características da Igreja dos tempos dos apóstolos, e essa característica irá se manter em toda a História da Igreja. Vejamos a seguir algumas importantes passagens bíblicas.

Paulo escreve:

“De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos. Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram a si mesmas com muitos sofrimentos. (I Tm 6.6-10).

 Vemos aqui que mais do que condenar a riqueza, o que é condenado é o amor ao dinheiro. Esse é um ponto-chave para compreendermos a relação do Cristianismo com a pobreza. Quando Jesus faz o convite ao jovem rico: “vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres”, ele está chamando-o principalmente a repartir e a ter Jesus como o seu maior tesouro. Assim, a relação da Igreja com a pobreza se faz nesse nível: o de repartir os bens e de ter Jesus como o maior tesouro. Muitos serão chamados a uma pobreza material radical, mas essa exigência não se estenderá a todos, pois o foco principal do chamado à pobreza é a partilha e o desapego, e não apenas a pobreza material em si. Vemos que a Igreja do tempo dos apóstolos era desapegada de seus bens e que havia a partilha de maneira generosa e abundante:

“Todos os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum.
Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade”. (At 2.44-45)

“Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um.” (At 4.34-35)

Vemos, aqui, que a Igreja é um organismo independente e que possui leis próprias, livres das leis do Estado e do mercado. Há mais de um milênio e meio antes de Karl Marx, os cristãos da era apostólica tinham tudo em comum, distribuíam os seus bens e, ao mesmo tempo, existia a propriedade privada, que não era controlada por nenhum Estado. Vemos, assim, que as leis da Igreja transcendem o Capitalismo e o Socialismo, e que a generosidade, desapego e partilha são características comuns do Cristianismo, e assim se dá a sua relação com a pobreza.

Diz, também, Paulo:

“O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade.” (Ef 4.28)

Constatamos, assim, que no Cristianismo, o trabalho é desejável, não para acúmulo de riquezas, mas para a partilha. Isso é algo totalmente novo e desafiador à luz do sistema capitalista secular que vivemos.

Assim diz Tiago, irmão de Jesus:

“A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”. (Tg 1.27)

Há muitos outros textos bíblicos que mostram a relação entre a Igreja e a pobreza na era apostólica, mas creio que esses são suficientes.


A relação entre o Cristianismo e a pobreza – era pós-apostólica

O Cristianismo irrompeu como uma religião de mártires, a começar do fundador. Primeiramente perseguidos pelas autoridades judaicas, os cristãos foram depois duramente perseguidos pelos imperadores romanos, pois essa nova comunidade que insurgia recusava-se a cultuar os deuses de Roma. Muitos cristãos sofreram terríveis formas de morte e tortura. Muitos eram queimados vivos, tendo seus corpos utilizados como tochas para iluminar a cidade, enquanto outros eram lançados às feras no coliseu, e serviam de espetáculo aos pagãos. Surgiam, assim, os mártires e confessores. Essa perseguição sangrenta duraria até o Édito de Milão, em 313, no qual o imperador Constantino finalmente concederia liberdade de culto aos seguidores de Cristo.

Em relação aos mártires cristãos, é importante aqui fazer um paralelo com a pobreza intrínseca ao Cristianismo, observando que ela constitui mais do que o simples despojamento dos bens. Refere-se, aqui, a um despojamento interior, no qual os cristãos abrem mão não apenas de seus bens materiais, mas de suas próprias vidas, por ter encontrado um sentido que transcende a toda a transitoriedade inerente a essa existência. Cumpre-se, aqui, a kenosis, o esvaziamento radical de Jesus conforme expressa em Filipenses 2.5-7.

A partir do ano 270, antes de Constantino, surgem os padres do deserto,  e começa-se a insurgir uma rica espiritualidade a partir de homens que se isolam do mundo para um relacionamento mais intenso e misterioso com o divino. Surge a figura de Antão do Deserto e a vida eremítica e depois, com Pacômio, surgem as comunidades cenobíticas, quando o isolamento do mundo passa a se formar em grupos e comunidades. No século VI surge a ordem beneditina, com Bento de Núrsia (480-547).

Vemos, assim, que mesmo com uma igreja fundida ao Estado, após Constantino, desenvolve-se uma rica espiritualidade nos retiros dos mosteiros, onde muitos monges cristãos retiram-se do mundo e desenvolvem um relacionamento mais profundo com Deus de maneira independente do mesmo Estado. Com o tempo, surgiriam importantes ordens religiosas, como a dos cartuxos, carmelitas, passionistas, franciscanos, dominicanos, jesuítas, cistercientes, etc.

Ao estudarmos a espiritualidade cristã, vemos que a pobreza, no seio do Cristianismo, está relacionada profundamente a um despojamento interior, à pobreza de espírito e ao abandono radical nas mãos do Deus da História. Quando encontramos Jesus, deixamos de pertencermos a nós mesmos (I Cor 6.19; Gl 2.20). Essa pobreza e desapego dos bens e da própria vida serão vividos ao longo da História de maneira radical por todos os verdadeiros cristãos.

Ao longo da Idade Média, surgem as ordens mendicantes, como a dos franciscanos e a dos dominicanos, fundadas, respectivamente, por Francisco de Assis (1182-1226) e Domingos de Gusmão (1170-1221).

A história de Francisco de Assis, assim como de todos os santos, é impressionante. Filho de um rico comerciante, abandonou todos os seus bens para se dedicar exclusivamente à evangelização e ao serviço aos pobres. Tanto a ordem franciscana como a dominicana eram mendicantes, isto é, seus seguidores abriam mão de seus bens e não levavam nada pelo caminho, e dependiam de esmolas. E é nesse contexto que surge o voto de pobreza, que é praticado inclusive em nossos dias por diversas ordens religiosas.

É comum, na história dos santos, o abandono total dos bens para dedicar-se exclusivamente à causa de Jesus, em total dependência dele – embora isto não seja tratado, por exemplo, nos livros didáticos de História. E isso está em conexão com Marcos 6.7-11.

Em tempos mais recentes, é surpreendente o exemplo de abnegação, despojamento radical e serviço aos pobres de Teresa de Calcutá (1910-1997). Uma pessoa que abandonou tudo para se dedicar aos mais pobres dos pobres, na Índia, com uma fundação – Missionárias da Caridade – que se espalharia por todo o mundo. Essa mulher incrível, que ganhou em 1979 o Prêmio Nobel da Paz, resume o seu apostolado nessa frase, de sua autoria: “O amor, para ser verdadeiro, tem que doer. Não basta doar o supérfluo a quem necessita. É preciso doar até que isso nos machuque”. Essa mulher, com certeza, entendeu os sentimentos de Jesus e também os profundos propósitos de sua Igreja.

No Brasil, não podemos deixar de citar também o exemplo de Irmã Dulce (1914-1992), que dedicou sua vida para exercer obras de amor e misericórdia, através de seus projetos sociais, que tiveram repercussão em todo o mundo. E temos também a história de Zilda Arns (1934-2010), cujas obras de amparo aos pobres, no Brasil, deixaram um memorial inesquecível.

Nas comunidades protestantes, também existe uma relação entre Igreja e a pobreza, e existe a tradição de que os nossos bens não nos pertencem, e que devemos distribuí-los. Através dos dízimos e ofertas, o objetivo é que cada cristão reparta o que tem com os demais cristãos, pois o destino das ofertas e dízimos, além do salário pastoral (que é bíblico) são também os projetos sociais e o socorro às pessoas menos favorecidas da comunidade. Esse é o destino dos dízimos e ofertas em todas as igrejas sérias. Assim, a comunhão dos bens que existia na Igreja no tempo dos apóstolos e que perdurou em toda a História da Igreja persiste e continua até hoje.

A comunidade protestante também possui inúmeros e preciosos projetos sociais que não são divulgados pela mídia, os quais incluem orfanatos, recuperação de viciados, alimentação e educação de crianças carentes, cursos diversos e gratuitos para pessoas de baixa renda, entre muitos outros. É grande também o zelo missionário das comunidades protestantes sérias, que seguem em missão até países pobres como as nações da Janela 10-40, aonde levam não somente a mensagem de Jesus, mas também roupas, alimentos e remédios. É comum, nas missões, irem médicos e outros profissionais cristãos para prestarem assistência às pessoas necessitadas, não somente no exterior, mas também nos rincões do Brasil.

Sendo assim, é profunda e significativa a relação entre Cristianismo e pobreza. As igrejas que pregam riqueza e prosperidade financeira estão na contramão da História da Igreja de Cristo. A História da Igreja é uma história de abandono radical da própria vida, de partilha,  de abnegação, de amor e de desapego.

Muito mais gostaríamos de falar sobre a Igreja, mas isso sobrepujaria o espaço desse artigo. Tratamos, brevemente, da natureza da Igreja e de sua relação com a pobreza e o despojamento, mas poderíamos falar muito mais em relação à sua contribuição cultural para a civilização ocidental. Deixaremos esse outro aspecto da Igreja para um outro artigo. Creio que o que escrevemos é suficiente para entender um pouco da natureza sobrenatural da Igreja e de seu evidente despojamento, algo que é evidente à luz de um conhecimento maior de História da Igreja, mas que passa ao largo da maioria graças à propaganda negativa por parte de estruturas institucionais, mediáticas e antirreligiosas.

Recomendamos que se estude a hagiografia dos santos – católicos, ortodoxos e protestantes. À luz de um olhar mais profundo, fica evidente que os verdadeiros cristãos propagaram e viveram de forma concreta os ensinamentos de seu mestre, e ainda o fazem, e que é o relacionamento de amor e mistério que existe entre os cristãos e Jesus que faz do Cristianismo a mais bela, profunda e emocionante de todas as religiões.

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1 KENNY, Anthony – História Concisa da Filosofia Ocidental
2 LEWIS, C. S. – Cristianismo Puro e Simples