sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Da essência do místico

O místico é aquele que, não sendo bem-vindo no universo das relações sujeito-objeto pós-kantiano, portador de todo o mistério e significado do mundo do homem, fundado não em uma superficial imanência de índole neoromântica, mas na radical Transcendência de procedência cristã – o mundo é criado ex nihilo para conceder intrínseco significado ao humano, através da lógica e linguagem –, transborda sentido a uma coletividade que não o acolhe e, sabendo acolher a alteridade, conhece também o refúgio em sua própria interioridade, onde abundam riquezas desconhecidas da era das superficialidades e do ruído; o místico é aquele que, sabendo acolher, também conhece, mais do que todas as coisas, sua essencialidade e, dizendo com João da Cruz: “entre as pedras, sinto-me melhor do que com os homens" (1), não subestima a impenitência do aión, tampouco a superficialidade das relações instituídas pelo cristão mediano, inapto para a era da cultura neomedievalista, isto é, a instituição do Cristianismo verdadeiramente profundo, a essência mística, o único que realmente existe, era do discernimento, onde toda superficialidade é superada. O místico é aquele que se relaciona com o aión, mas também o discerne, e que mantém toda a sua vontade concentrada em si.

Se assim não o fizesse, apagar-se-ia, e superado seria por uma coletividade cuja leveza o esmagaria; não perderia sua essência, mas não se distinguiria. O que move o místico não é somente o sentido, que lhe é próprio, de força e avassaladora coragem, mas também o primado da vontade livre sobre todas as coisas. O místico é movido pela vontade, à  qual se submete o amor.

Na coletividade líquida pós-moderna é, o cristão mediano, absorvido pelo aión, deixando, por isso, na essência, de ser cristão. Torna-se um com o aión e, ao místico, opõe-se, jamais o discernindo. Manifesta as características primárias do fruto do Espírito, mas não o amor radical e concreto que se exterioriza, submetido à vontade, e, tampouco, a força, coragem e discernimento característicos do único Cristianismo que, em nosso  tempo, se tornou realmente digno desse nome. Quem hoje é, realmente, o cristão? Não se dissolve na ambiguidade coletiva instituída e regida pelo aión. É, tão-somente, o místico.

É, a santidade – kadosh – o sentido de estar separado, o primado da vontade sobre o entendimento, e deste sobre o sentimento, e deste sobre as sensações, de modo inverso ao que se procedia quando as sensações se sobrepunham ao sentimento, e este ao entendimento, e este à vontade. A mística, ciência de santidade e de amor, é hoje mais que disponível ao mundo, porque descoberto está sendo o véu sobre a filosofia profunda de João da Cruz, sistematizador dessa ciência, pós-medievalista, a saber, a mística profunda. Não é um caminho onde prevalece a aridez, como pode parecer ao estudioso principiante, mas um caminho onde transbordam as comunicações da vida unitiva, destino de toda vida mística.

O Cristianismo Mediano é, essencialmente, uma das grandes tragédias pós-modernas. Universo da aparência e superficialidade e do relacionamento de ilusória amabilidade, da fluidez baumaniana, do permanente secularismo, do necessário não-discernimento e do perpétuo desprezo a toda verdadeira essência mística, jamais por ela será, verdadeiramente, conhecido. O místico é aquele que enfrenta continuamente o aión, mas que também se afasta do ilusionismo que nele se dissolve – a saber, o Cristianismo Mediano, isto é, o Falso Cristianismo –, o qual se opõe ao verdadeiro sentido sacral e mistagógico da existência, que sublimemente transcende ao reducionismo das relações sujeito-objeto, instauradas no pragmático seio da modernidade.

O místico, em sua solidão, não se opõe ao amor e à caridade que são inerentes ao verdadeiro Cristianismo. Eis o motivo: sabendo amar, ama verdadeiramente e, sabendo acolher, acolhe verdadeiramente; porém, nesse  movimento, não se confunde com o objeto acolhido e amado, isto é, não espera, nem faz grandes projeções, pois sabe que um pequeno amor ou quase nada será, em retribuição, a medida; e, se o mundo é pequeno demais para o místico, este, conhecendo-se perfeitamente, em seu estágio maduro, concentrará, mais que devidamente, toda a sua vontade em si, não subestimando, jamais, as admiráveis riquezas de sua interioridade.

A mística é a vontade que, ousadamente, se direciona para a Transcendência, e é o discernimento. A mística é o discernimento. E este, progressivamente avante, com um sentido de certa violência em relação ao aión, a saber, violência da percepção e do discurso, é aquele sentido de coragem e de se conhecer ser indestrutível, e de saber, agora, que já é passada a era dos confessores e dos mártires, e que os verdadeiros cristãos, não como Huss, o ganso, tampouco qual Lutero, o cisne – pois a audácia mística difere da ousadia daqueles humanistas, os quais apenas instituíram o sentido alquímico-pragmático da modernidade histórica –, são a águia que, conhecendo que a solidão, a segurança, o terror e a independência convergem, paira sublimemente acima das teias que tecem as danças constantes das marionetes. Serão poucos, é verdade. Mas serão aqueles que poderão ser designados os verdadeiros cristãos.

Introduzo, aqui, o conceito de dulcibilidade. Tanto a amabilidade quanto o terror são características marcantes da mística. Essa força avassaladora e conjunta denomina-se dulcibilidade. A mesma força que faz enaltecer a candura, torna-se intrépida diante da presença do mal no mundo, que é o aión. O amor, que é forte, raramente pode ser manifestado, pois prevalece a presença do mal no mundo. A força, que é o discernimento e a coragem, que introduzem na união mística neojuaniana, é a dulcibilidade, que estabelece o predomínio da vontade. A união mística é o primado da vontade livre sobre todas as coisas. A dulcibilidade é o amor submetido à vontade.

Denomina-se, o Neomedievalismo, a era do discernimento, no qual muito mais desastroso será, para a cultura, o cristão mediano do que o ímpio manifesto. O objetivo da filosofia mística neojuaniana é exatamente a formação espiritual do indivíduo, pois é certo que grande parte das pessoas não são formadas em espiritualidade. O Cristianismo é rejeitado por muitos porque ele não é apresentado adequadamente como espiritualidade. Grande parte das pessoas que se dizem cristãs desconhecem o que é espiritualidade, e muitos daqueles que a buscam, procuram-na na Índia, mas jamais se empenharam em estudar seriamente João da Cruz. O estudo de João da Cruz é obrigatório para aqueles que levam a sério o tema da espiritualidade. Sua obra trata-se de uma síntese e sistema completo de espiritualidade, a saber, a verdadeira espiritualidade cristã profunda. A filosofia mística neojuaniana tem como fundamento precípuo a estrutural obra do carmelita, e o seu objetivo é formar o cristão, não para a vida da igreja dominical, mas para a cultura neomedievalista. O cristão mediano não ajuda em nada; apenas – e muito – atrapalha. Se não surgirem mais místicos, isto é, verdadeiros cristãos, então estará anunciada a morte do Cristianismo. 

Ocorre que o Cristianismo, por seu fundamento, não pode ser destruído. Tampouco, o místico. A essência cristã não é o clube cheio com as mãos estendidas, mas o perscrutar de poucos. A essência do Cristianismo é a mística, e a essência da mística é a filosofia. O respirar do Cristianismo é o pensamento. Pensamento submetido à vontade – por isso, a necessidade de estar a caminho da união divina. A essência do místico é a filosofia mística neojuaniana: a saber, a união mística que não é apenas união de amor, mas também da vontade, que se prontifica ao discernimento.

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(1) CRUZ, João da, Ditames de Espírito, 43