domingo, 29 de setembro de 2019

Neomedievalismo. Oitava Parte


OITAVA PARTE. DA DISTINÇÃO ENTRE A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E A EXPERIÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE 


Quando me refiro à espiritualidade, não a concebo tão somente como um movimento solitário da alma em direção ao Absoluto, isto é, ao Deus pessoal e transcendente, tal qual nos apresenta a maior obra já escrita sobre o assunto, ou seja, a mística profunda de João da Cruz, mas, também, como um movimento em conjunto, sinérgico e coeso, que constitui uma filosofia a qual, amparada na solitude, é também uma espiritualidade de relações. Constitui, desse modo, a rica espiritualidade de João da Cruz e Orígenes, uma estrutura que se complementa e se acaba em um sentido de comunidade, de unidade e de grande cultura. 

A espiritualidade, a vemos, no silêncio dos tranquilos mosteiros, nas conversações animadas dos grupos de jovens das  pequenas comunidades cristãs, onde as expectativas em relação a Jesus e a constante onda dos entretenimentos ruidosos misturam-se. Sendo, desse modo, o sentido contemporâneo de espiritualidade algo profundamente vinculado às relações, faz-se necessário distinguir a experiência superficial estética da experiência mais profunda de espiritualidade.

Toda experiência mais profunda de espiritualidade coletiva contemporânea estará vinculada, inevitavelmente, às sensações. A experiência de comunidade é a experiência da proximidade, da celebração festiva, do olhar que acolhe, do colóquio e do abraço, onde manifesta-se o amor ágape. É inevitável, portanto, que ao participar de uma celebração festiva, o jovem confunda a experiência de espiritualidade com o sentimento estético, sendo, este, extremamente semelhante àquele, o qual, porém, diferentemente da mística mais profunda, não se fundamenta em um amor radical ao humano, manifestação cristológica própria da grande cultura, mas apenas aspira ao entretenimento contínuo, em um espírito de camaradagem de superfície onde uma coesão é iniciada, mas jamais se concretiza, e onde apenas se acena ao superficial, ao protagonismo e ao esquecimento, pois todo entreter-se contínuo é o esquecimento, quer do sentido de estar no mundo, quer do elevar-se a ser buscado, quer do encontro a ser iniciado.

Na experiência estética, parece haver entrega, e amor verdadeiro, mas realiza-se tão somente uma coesão que, sendo unidade, fundamenta-se apenas no sentido da superfície, e jamais avança para além disso. É inevitável, portanto, que aquele que busca a verdadeira coesão, com o passar do tempo encontre, nesses ajuntamentos, somente tédio e vazio, e deles se afaste, passando a cuidar tão somente de sua própria individualidade. Contudo, agora será, a própria cultura, isto é, a grande abertura, o sentido de comunidade, e não mais os grupos institucionais fechados que, continuando a existir, deixarão entretanto de ser símbolo de liderança e refúgio, continuando a ser importantes, porém exercendo, na cultura, um outro papel, o qual explicitaremos adiante.

Será, a experiência cultural neomedievalista, o verdadeiro sentido da espiritualidade, movimento que, progredindo  em direção à alteridade, e em direção ao próximo, realizará, de maneira verdadeiramente surpreendente, a única expectativa em relação ao humano.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Neomedievalismo. Sétima Parte


SÉTIMA PARTE. ADORAÇÃO, NEODULIA, COESÃO E SENTIDO


Se, dentre todos os movimentos humanistas, o de 1517 foi o mais emblemático, no sentido de quebrar certo sentido de cultura, dentro de um contexto de progressão alquímica pragmática-histórica, isto é, trazendo à tona um suposto novo mundo, através de um programa que, por seus próprios meios, se instalará de forma necessariamente invisível e progressiva, também é verdade que não logrou, tal programa, efeitos tão vastos como o esperado, permanecendo, o posterior avivamento evangelicalista, o Grande Despertamento, e todo o sentido da adoração contemporânea algo profundamente cristão, semelhante ao espírito da Idade Média, de forma que os constantes empecilhos que são hoje inerentes à Igreja estão cheios de enfado e trabalho, pois é algo não tão fácil quanto o aparente navegar contra o sentido da grande cultura. Se dissemos que o sentido da adoração hoje é, em grande parte, antropodúlico, isto é, constitui o que podemos denominar o espírito de camaradagem de superfície, também é notório que existe algo como adoração, isto é, um espírito contemporâneo e novo, de grande arte e beleza, que, sendo beleza e arte, longe de cumprir o mais antigo programa romântico, institui o verdadeiro sentido contagiante de unidade, isto é, fixando o olhar em direção ao transcendente, produz coesão, institui algo parecido com comunidade, deseja verdadeiros relacionamentos. Contudo, é nesse ponto, especificamente, que as coisas se misturam.

A adoração, que existe, e a coesão, que é iniciada, transformam-se, com o passar do tempo, em momentos que se liquidificam. O que existe é, antes de tudo, um movimento de adoração e coesão, isto é, movimentos de espiritualidade que operam, contudo, sem discernimento. Inexiste uma ciência do relacionamento. Desconhecem-se os movimentos da contracultura. Desse modo, uma espiritualidade que é carente de uma teoria sólida e contemporânea busca algo que parece ser uma unidade difusa, ou momentos que escapam. Contudo, é a teoria neomedievalista justamente aquela que dará fim ao período da pós-modernidade, iniciando o período ao qual denomino Neomedievalismo. Isto é, dará fim à era da superficialidade, inaugurando a era dos relacionamentos.

Subjaz, na experiência propriamente macrocultural, quatro elementos, entrelaçados, a saber: adoração, neodulia, coesão e sentido.

A adoração, no sentido cristão, consiste em uma marcha histórica que a Igreja progressivamente desenvolve até se tornar a exteriorização de um amor individual manifestado em um sentido pleno de comunidade. Destarte, aquela santidade que outrora se manifestava individualmente no silêncio dos mosteiros vem a se tornar, no significado contemporâneo de adoração, em movimento espontâneo de sinergia e unidade. É, a revolução litúrgica protestante evangelicalista, a redenção de uma desconstrução histórica, e o sentido verdadeiramente neomedievalista que, se guiado por uma teoria sólida de espiritualidade, irá abalar as estruturas de todos os relacionamentos da cultura do ocidente.

É, a adoração, que inexiste na ideologia neoromântica, pois é movimento que se eleva em direção à transcendência, aquilo que produz sentido e coesão, através de um outro olhar ao humano, no qual se caracteriza  a neodulia. Se, na Idade Média, cultuava-se os santos como ícones demasiadamente distantes, e na modernidade permanecem, os místicos, também apartados, mas subestimados e não queridos, será justamente a cultura neomedievalista aquela na qual haverá um outro olhar em direção à santidade e ao humano. O sentido de adoração será o de pessoas que, antes distantes, em diferentes comunidades, agora se enxergarão próximas e pertencentes a uma mesma grande comunidade, não através de um espírito de unidade de superfície que tende à difusão, mas de um outro sentido, recém-encontrado: o de ser, a grande cultura cristã do ocidente, aquela que subsiste especificamente no que a subjaz, isto é, o mistério cristológico que unifica a todos que, entrelaçados em uma mesma mística, descobrirão de maneira absolutamente coesa e próxima, no outro – isto é, no humano –, o verdadeiro sentido da santidade, e que se oporá à espiritualidade líquida neoromântica, trazendo à tona, dentro da cultura, o sentido.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Neomedievalismo. Sexta Parte


SEXTA PARTE. ANTROPOLATRIA,  ANTROPODULIA, AMBIGUIDADE E NÃO-SENTIDO


Constituem, as constantes transformações dos tempos, algo que requer, por parte do pensamento, não somente a esperada renovação da linguagem, mas também o surgimento de novos termos. Sendo, uma cultura de longa duração, aquilo que acumula tensão, expectativas e pluralidade de pensamentos, entrelaçados de maneira complexa em uma intrincada teia, a ditar a dança constante das marionetes, é necessária certa filosofia da história e da cultura que reorganize o pensamento, apontando novos rumos, e que inspire novas gerações, fundadas agora em esteios mais seguros, podendo conhecer, além do olhar tradicionalista e institucional, uma estrutura fundante e mantenedora do oikoumene, a guiar, dirigir e inspirar a História sob o mesmo olhar que contemplou as doces águas tranquilas da Galileia. O pensamento cristológico não é a filosofia das instituições, mas o pensamento fundante do próprio mundo, o qual revela, através de fartas evidências históricas, o impacto da cristologia que constitui fundamentos os quais não foram, pela insurreição iluminista, e também romântica, abalados.

É assim, a frágil espiritualidade neoromântica, aquela que dá origem a esses quatro elementos, entrelaçados, a saber: antropolatria, antropodulia, ambiguidade e não-sentido.

Inexiste, na filosofia  de tipo neoagiana, o que denomino pressuposto ontológico do relacionamento. Sendo, na filosofia  propriamente neomedievalista, o que confere sentido às relações um Deus pessoal, transcendente, relacional e amoroso, na espiritualidade de tipo mais superficial o conceito de divindade jamais é claramente definido, e tampouco a ideia de adoração, isto é, de alguém que presta culto e se rende diante daquele que transcende em bondade, misericórdia e beleza a criação, concedendo pleno sentido à mesma, e que interage com o humano; tal ideia não pode ser estabelecida, voltando-se, então, a imagem de culto ao próprio homem, constituindo, assim, a antropolatria, a qual é própria de uma espiritualidade que, sendo pós-moderna, possui raízes em determinado modernismo pragmatista histórico.

Vemos surgir, assim, na ideologia antropólatra, um movimento de ingenuidade sem precedentes: se o homem está unificado com a natureza, se a divindade é fluida e esparsa, se o princípio divino é imanente e confunde-se com o próprio homem, a consequência natural é que ele poderá, a partir de então, ser adorado, o que sem dúvida constituirá uma espiritualidade das menos inteligentes possíveis, pois é atitude menos prudente e razoável imaginável cultuar o próprio homem. O culto e o fascínio pela natureza, pelo exótico e pelo sentimento romântico subjetivista é, em última instância, o culto ao próprio homem, o exílio de toda espiritualidade cristã relacional inteligente,  de um Orígenes e de uma Teresa de Lisieux, é o naufrágio de todo o sentido da grande cultura e a ideologia que jamais poderá subsistir, quando confrontada com os princípios sólidos, estruturais e arquitetônicos dessa Filosofia Mística, a qual é o olhar inteligente para aquilo que os verdadeiros grandes místicos construíram através dos séculos.

Se a antropolatria é o culto incessante ao próprio homem, é, a antropodulia, uma relação horizontal, e não vertical, como aquela, em direção aos propósitos pragmatistas de uma era que, não inaugurando algo novo – embora ecoe ingenuamente a trombeta de uma falsa aurora –, introduz o que denomino ditadura do hedonismo e do entretenimento, onde o espírito de jovialidade que permeia os relacionamentos parece instituir comunidades, mas institui tribos. A antropolatria introduz a adoração a um outro, enquanto a antropodulia inaugura uma adoração a um grupo, no qual aquele que adora também está inserido. Porém, não é adoração em sentido estrito, pois essa, por definição, só pode ser em relação ao transcendente. Constitui, então, o espírito da falsa adoração pós-moderna, a atmosfera da ambiguidade e do não-sentido.

É, a espiritualidade líquida contemporânea, o entreter-se contínuo, a grande expectativa em relação ao sensível e o esquecer-se do humano. Porém, é extremamente difícil de ser discernida porque, como já afirmei, a espiritualidade que é própria da grande cultura também lida continuamente com o sensível, se a definirmos como uma cultura de santidade que se desprende dos mosteiros para se tornar agora cultura cosmopolita e verdadeiros relacionamentos. Nesse sentido, para distinguir entre as duas espécies de espiritualidade não basta definir alguns poucos conceitos. É necessário construir uma nova teoria de espiritualidade – que, sendo nova, possui raízes na própria cultura. A saber, a verdadeira Filosofia Mística.

Sendo, a antropodulia, o culto ao grupo, a antropolatria é o culto a um outro, relação vertical a um que aparenta ser um pacificador, isto é, alguém de quem muito se espera, e que pelas suas muitas habilidades institui o culto ao humano, pois, sendo quem vem em nome de si mesmo, parece instituir algo novo; é, porém, a religião que se volta contra o espírito que é próprio da grande cultura. No seio da grande cultura, encontrar-se-á a verdadeira espiritualidade. O que aparenta ser o novo, sem o ser, é movimento de contracultura, e é falsa espiritualidade.

A caracterização da antropodulia, ou culto ao grupo, é o estabelecimento de uma falsa inteligência, eternamente distraída, a qual, vendo, não vê, ouvindo, não escuta, falando, não diz, tocando, não sente. O espírito renascentista que, dizendo adorar, não adora, constitui a adoração hipnótica que, cegamente guiada, mas sem guia, estabelece relacionamentos frágeis e ambíguos, e que por não ser adoração em relação à transcendência, mas difusa, se perde em sua própria imanência – carente de fundamentos sólidos –, e se torna, então, não-sentido.


FIM DA SEXTA PARTE