segunda-feira, 12 de setembro de 2022

MANIFESTO MÍSTICO

Cristologia e Contemporaneidade: Estruturas do Cristianismo Contemporâneo e as duas Igrejas do futuro

 

Anderson Francisco Paiva de Souza

 

 

Prefácio

 

A guerra é mental. Realiza-se na escuridão

Existe certa beleza no ateísmo, que é o sentimento de ser puro. Explico. O ateísmo permanece corajosamente árido no que se refere à possibilidade da ambiguidade. Sendo cristalino, o ateu permanece mais claro do que os cristãos da pós-modernidade. Nesse caso, a exceção são os cristãos místicos.

Os místicos herméticos, na maioria das vezes, desconhecem a dúvida. Foi o próprio hermetismo que a inventou; sendo, o místico hermético, um não cético, ele introduziu lentamente a dúvida na mentalidade cristã de cultura por cerca de oitocentos anos, desde Francesco Petrarca, nascido logo após a morte do último dos grandes cristãos filósofos, Duns Scoto, inaugurando um período de oito séculos sem que se produzisse um filósofo cristão sequer; durante essa lenta destruição do sentimento da Igreja, sucediam-se admiravelmente Pico de la Mirandola, Marsilio Ficino, Nicolau de Cusa, Francis Bacon, até que Descartes, finalmente, estabelecesse a dúvida; foi Francesco Petrarca quem concebeu a ideia de que a era da Igreja, ou seja, a Idade Média, era a Idade das Trevas. Foi, nesse sentido, um visionário, um gênio. Séculos depois, no século XVIII, o sentimento de Kant e de Voltaire era de que o Iluminismo seria uma era das Luzes da Razão como oposição às trevas da superstição, a saber, a fé em um Deus que não pode ser conhecido, por transcender a experiência; a negatividade é a teologia mística apofatica neoplatônica e hermética, que iludiu até mesmo Tomás de Aquino – influenciado por Dionisio Areopagita –,para quem Deus não pode ser efetivamente conhecido,  a não ser por analogia; para o Iluminismo, as luzes não são a Igreja, mas algo distinto dela; construir-se-ia, lentamente, simbolicamente, a ideia de que o que para a Idade Média era luz, são trevas, e o que para ela eram trevas, agora são luz; o raiar de uma nova aurora, uma estrela que pode não mais ser estabelecida como decaída, como o abismo do esquecimento; a alquimia renascentista, como a cruz e como a rosa, instituiu aquilo que era proibido na Idade Média; o sentimento da alquimia como contracultura.

Foram os místicos alemães, diferentes de Teresa de Ávila, que inspiraram uma espiritualidade para um novo mundo; a profundidade mística luterana insurge a partir da invenção do humanismo, projeto alquímico; posteriormente, no Iluminismo, aqueles imanentistas herméticos que tinham mais fé, foram os que estabeleceram a dúvida para os cristãos.

Durante oitocentos anos, os cristãos assistiram covardemente e emudecidos ao mais belo espetáculo dos filósofos herméticos, sem que se produzisse, entre os cristãos, nem mesmo um filósofo. O longo exílio da filosofia cristã de cultura. Abriram-se os caminhos para Hegel e seu neoplatonismo de superestrutura.

Eu admiro esses filósofos. Destruíram argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento do Aión e levaram cativo todo pensamento, para torná-lo obediente ao Chrónos. Desde o Renascimento, o Cristianismo perderia todas as batalhas, não no campo da salvação, mas na área da cultura. Disseram que foi a morte de Deus. Mas foi também a morte da Igreja.

Contudo, em 15 de novembro de 1932, nascia Alvin Plantinga.

 

Cristianismo e Neoplatonismo antigo. Batalha perdida

 

A alma do mundo é um conceito estrutural para o hermetismo, que está em Pitágoras, Platão, no neoplatonismo, em Hegel, Helena Blavatsky e Mário Ferreira dos Santos.

O médio platonismo, a escola alegórica de Alexandria e o pensamento de Filon constituiram uma efervescência cultural que inspirou gerações. Origenes, ao mesmo tempo, estabelecia as bases para uma mística unitiva genuinamente cristã e esponsal. Amonio Sacas fundava uma escola filosófica hermética e, a partir dela, Plotino fundamentou o Neoplatonismo. O hermetismo tornava-se, então, filosofia de potência contra a cultura, ameaçando sutilmente uma mística cristã nascente. Surgiam Proclo, Jamblico, Porfirio, Dionisio Areopagita e, enfim, os desafios da negatividade apofatica hermetica, do Uno como o Deus ambiguo  e nebuloso do ponto de vista filosófico,  espiritualidade imanentista como emanação teurgica e todos os seus sutis encantamentos; o hermetismo a partir da figura mítica de Hermes Trismegistos, o três vezes grande, e a sabedoria da Cabala também nasciam; o Cristianismo conviveu com tudo isso e foi lento para discernir o abismo neoplatônico que então se insurgia, e que enganaria Tomás de Aquino; se tivesse percebido essas sutis raízes de contracultura, o Renascimento de Francesco Petrarca jamais teria logrado êxito, e hoje teríamos, sim, uma mui elevada mística cristã de cultura; isso agora somente será possível, tendo-se em vista todos esses atrasos da História, que pressa pede, através da fundamentação que aqui exponho: o que agora está apenas nascendo, a cultura profunda do Neomedievalismo.

 

Cristianismo e Neoplatonismo renascentista. Batalha perdida

 

Giordano Bruno foi um dos grandes herméticos de seu tempo. Sua condenação não se deveu à ciência, mas à alquimia.

Pico de la Mirandola, Nicolau de Cusa e Marsilio Ficino foram também neoplatônicos e a cultura humanista então insurgente jamais foi bloqueada pela própria Igreja.

O humanismo instaurado nunca mais estará, a partir de então, ausente do Ocidente. Todos aqueles reformadores participaram dessa revolução, e também estavam conscientes do que realizavam. Martinho Lutero e a rosa e a cruz e a alquimia, a mística profunda alemã. A história já não era mais totalmente sacra, mas originalmente  humana.

Alguns fatores históricos dificultaram a reação da Igreja; entre eles, o heliocentrismo de Galileu, que demoliu as estruturas de uma cosmologia excessivamente aristotélica; isso desnortearia o catolicismo desde aqueles tempos até hoje, um trauma histórico; a burguesia acumulava, então, capital político, e apoiaria revoluções determinadas; o século XVII, da cruz e da rosa, possui seus grandes manifestos, assim como, nos tempos mais recentes, depois do fim de uma grande diáspora, os sábios possuem seus protocolos; o conhecimento da Arábia emocionaria a cultura nascente da espiritualidade da Alemanha; foram os místicos alemães aqueles que tiveram mais fé, e se autointitularam místicos; o pensamento de João da Cruz ficaria restrito aos mosteiros e não emocionaria os anseios por uma liberdade secular; o conhecimento cabalístico, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo, o sufismo, o neoplatonismo teúrgico, a teologia apofática hermética,  o spinozismo, o leibnizismo, o Romantismo Alemão, o Idealismo Alemão, a Nova Era, a Yoga, o thelema, a meditação transcendental, o Movimento Novo Pensamento e as leis herméticas e a lei da atração não teriam emocionado João da Cruz; juntamente com a sabedoria babilônica, egípcia e a Wicca, permaneceriam, para o Doutor Místico da Igreja, motivo perpétuo de lástima, até mesmo riso ou esquecimento, incapaz de conhecer os caminhos da união mística efetiva divina.

Inaugurando a própria modernidade filosófica, Descartes institui a dúvida como método acadêmico; os católicos não poderiam discernir essas coisas; estavam fascinados por Aristóteles; esqueceram-se rapidamente de que a mística é, ela mesma, o único Cristianismo que realmente existe; quando a Igreja esquece-se de que é essencialmente mística, qualquer batalha pode ser perdida; João da Cruz reagiria poderosamente, fundamentando a monumentalidade mística; mas foi menos estudado do que a cosmologia aristotélica.

Terá Jesus concedido uma defesa para a Igreja contra a sutil ciência da alquimia? Sim, ele instituiu o Carmelo e chamou João da Cruz. Basta que se estudem os livros. E, também, que se leve a sério cada palavra do que ali é exposto.

Em relação ao problema cosmológico, não é difícil perceber que o mundo humano não é cosmológico; não é mecanicista. Matematizamos o mundo. Mas a matemática precede o mundo.

 

Cristianismo e modernidade. Batalha perdida

 

Francis Bacon propõe um novo Organon; Descartes inventou a dúvida; é arquiteto por excelência do sentimento cético perene da própria modernidade; o panteísmo de Spinoza inaugura o neoplatonismo moderno e Leibniz propõe uma metafísica obscura; o racionalismo hermético será contraposto pelo empirismo britânico, que é ceticismo; o ceticismo de Hume contestará não somente a metafísica, mas to próprio conhecimento; será, finalmente, o gênio de Kant que solucionará todas essas aporias dialéticas epistemológicas históricas; bloqueando o Transcendentalismo, derrubando o acesso ao Deus que está fora do espaço e do tempo, institui objetivamente a própria morte Deus na cultura, abrindo os caminhos para que, após as tentativas de Fichte, Schelling e de todos os místicos, poetas e estéticos alemães, Hegel institua, finalmente, o Sistema, a monumentalidade metafísica hermética, neoplatônica, isto é, o Imanentismo filosófico  de profundeza; finalmente conseguiu-se derrubar a monumentalidade de Tomás de Aquino; o novo mundo agora é nova religião, sentimento de ser portador do Saber Absoluto; o ser finito, posto pelo Espírito Absoluto, agora é toda a realidade; Deus tornou-se ambíguo, obscuro, neoplatônico; o ateísmo moderno é apenas um véu; obscurece o mais profundo sentimento romântico de Goethe e Schiller; desconhece o hermetismo de Mestre Eckhart, Paracelso e Jakob Böhme; o ateísmo de Nietzsche apenas nos entretém com um ceticismo que, por todos os místicos alemães, sequer foi conhecido; o falso Cristianismo de Kierkegaard afirma que o conhecimento da Igreja é absurdo; Hegel afirma que o conhecimento da nova religião é Razão.

 

Cristianismo e pós-modernidade. Batalha perdida

 

Whitehead afirmara, de acordo com a religião de Hegel, que tudo é processo; imanentismo cósmico analítico; a irmã de Henri Bergson é próxima a Samuel Liddell MacGregor Mathers; o autor de As duas fontes da moral e da religião  foi um dos principais herméticos daquela geração; G. K. Chesterton e C. S. Lewis não inventaram a apologética; a filosofia cristã somente será instituída por Alvin Plantinga; G. K. Chesterton e C. S. Lewis não produziram apologética, mas literatura; a literatura de C. S. Lewis está para J. R. R. Tolkien e J. K. Rowling assim como a literatura de Chesterton está para o sentimento de que no futuro somente existirão duas Igrejas; sempre serão duas; o ateísmo, sendo sentimento puro, produz, apesar disso, a nebulosidade do conceito na cultura, no que se refere a seu desconhecimento completo do que é o hermetismo místico determinado que, tal qual a Igreja, também move o mundo. Por que vivemos ainda na cultura cristã ocidental, e não na cultura ateísta ocidental, tampouco na cultura hermética ocidental? Porque o ateísmo jamais institui a cultura, mas tão somente a contestação, enquanto o hermetismo é alquimia como motor da contracultura; isto denomina-se Renascimento; o ateísmo, ao se utilizar das leis da matemática e da lógica, esqueceu-se de questionar de onde a matemática e a lógica surgiram; encantando-se com a matéria, investiga-a a partir da mente e da consciência, que são, elas mesmas, qualquer coisa que não matéria; estuda as leis do Cosmos e da matéria a partir da matemática, mas a matemática não é matéria.

Helena Blavatsky encantou-se com a cultura ariana mesma, com o Tibete e a Índia, mas explica o universo a partir da cosmologia moderna, atribuindo-a aos mitos do Oriente, mas o Oriente antigo não pensava assim; o Cristianismo é mais sincero nesse aspecto; jamais cogitou afirmar que Moisés, por exemplo, conhecia o Big Bang; a filosofia cristã afirma que a revelação divina é progressiva; Blavatsky ensina que o hermetismo antigo é originário e já possuía as origens da religião e da ciência; o estudo crítico da História demonstra que tudo isso foi desenvolvido progressivamente.

G. K. Chesterton, em seu livro de contos A inocência do padre Brown, de preço  acessível e disponível para o escrutínio público, no seu conto O olho de Apolo, assim afirma, citando as palavras do sacerdote Apolo contra o padre Brown:

“Encontramo-nos por fim, Caifás – declarou o profeta. – A sua igreja e a minha são as únicas realidades deste mundo. Eu adoro o sol, o senhor adora o escurecimento do sol, o senhor é o sacerdote dos moribundos, eu sou o sacerdote do deus vivo. O seu presente trabalho de suspeita e calúnia está de acordo com a sua veste e o seu credo. A sua Igreja mais não é que uma negra polícia, um conjunto de espiões e detetives que a única coisa que desejam é arrancar aos outros confissões de culpa, seja por meio da tortura ou da traição. Os senhores querem acusar os homens da prática de crimes, eu quero acusá-los da inocência. Os senhores querem convencê-los do pecado, eu quero convencê-los da virtude. Leitor de livros do mal, uma palavra mais, apenas antes de eu fazer desaparecer para sempre os seus pesadelos sem fundamento. Nem por sombras é o senhor capaz de compreender o pouco que me importa que possa acusar-me ou não. As coisas a que chama desgraça e horrível condenação valem para mim o mesmo que vale para um homem adulto um ogre de uma história infantil.”

Depois de algumas linhas, nesse curioso conto literário, assim se afirma:

“Era a primeira vez que Flambeau via o padre Brown ser derrotado. O sacerdote permaneceu sentado a olhar para o chão, a testa coberta de rugas e de dor, como que envergonhado. Era impossível escapar ao sentimento que as palavras do profeta tinham fomentado: o de que o homem taciturno que era um profissional da suspeita tinha sido vencido pelo espírito orgulhoso e superior, amante da saúde e da liberdade natural”.

O que o ateu teria a dizer sobre isso? Obviamente, nada. Ele sequer entendeu. Pois se o cético se considera muito sagaz, ele é ainda mais lento para discernir o oculto do que o próprio cristão mediano. Instigante mistério! Se somente existem duas igrejas, e toda essa Babilônia, e nada mais existe nesse mundo, toda a história humana não passa de um conflito invisível entre o Chrónos e o Kairós, entre o  Aión, ou para irmos muito mais longe, entre a frágil rebelião de Daniel 8 e a plenitude absoluta de Efésios 1, a qual se concretizará no milênio, a partir do Terror que já existe agora. Império absoluto da Igreja, domínio invencível do Kairós. A virtude da Igreja do futuro não será o amor, mas a outra extremidade determinada,  sentimento contra quem  sobe do mar, e especialmente contra quem já não é luz, mas um falso amanhecer.

A primeira Guerra Mundial de 1914 pode ser um símbolo de um princípio de dores para a humanidade, e a partir de então a ordem e o progresso positivista de Comte estarão em xeque; batalhas e guerras sempre existiram; abordamos o embate da filosofia cristã com o neoplatonismo; porém uma Grande Guerra pode também ser definida como um conflito entre duas grandes potências, seja guerra fria, seja efetiva, efetividade entre aquelas que são as duas únicas realidades desse mundo; a arma para a guerra da Igreja é a própria filosofia mística estabelecida no segredo de uma ciência elevadíssima de oração; os Fundamentos da Guerra constituem conhecimento de alto preço, invisível para o inútil cristão mediano, a saber, o falso cristão, o qual jamais foi sequer convertido; o discernimento é para os fortes e para os que têm coragem para amar a verdade; o pós-guerra constituirá a era transitória pós-moderna, era líquida, era da superficialidade, do imediatismo, da arrogância, do ódio e do ressentimento, mas principalmente da mentira; o amor à mentira, principalmente dentro da Igreja, e um amor adocicado e teatralizado por Jesus, mistura do Bem e do Mal, água com fel e açúcar, afetado e fingido, atrativo, enganador, ambíguo, muito parecido com o mel dos místicos, mas cujo sabor é no fim amargo até a morte, sutil e traiçoeiro, diluído, e tem como característica precípua denunciativa o fato de que jamais se concretiza no mundo espiritual, pois é ódio sutil à mística determinada no próprio mundo, e é um com o Aión, escravo predileto do Chrónos; esses constituem a principal característica do grande teatro da pós-modernidade; o ateu tem mais crédito, talvez seja salvo; o cristão mediano, jamais conheci.

 

O cristão mediano: uma invenção pós-moderna

 

Concordando com Zygmunt Bauman, um dos gênios para o nosso tempo, e aplicando a fluidez para a Igreja, podemos dizer que o cristão pós-moderno constitui, simbolicamente, o maior de todos os abismos da pós-modernidade. O que é o amor líquido? Foi o cristão mediano quem o arquitetou; vivemos na própria cultura ocidental cristã; podemos ver isto, até mesmo, na própria cultura Worship; se a recente renovação litúrgica e o movimento contemporâneo de adoração foi o maior avivamento de toda a história da Igreja, mas jamais concretizou, mas apenas iniciou comunidades, isto é, transformou o sentimento em relação ao humano, mas não a vontade, isto significa que também há na Igreja um conhecimento informal que é suave e descansada mistura entre o Bem e o Mal, a aposta nos dois lados da moeda, a melhor e a pior versão, que não é o estar separado do mal, e não realiza a verdadeira santidade mística como kadosh, como adoração efetiva, ciência de oração para a Igreja. Explicarei a seguir qual foi a origem histórica desse recente sentimento.

O Cristianismo perdeu todas as guerras desde o Renascimento, não no campo da salvação, mas da cultura, porque não discerniu os espíritos, os tempos e, muito menos, o Chrónos. O mesmo poderia ocorrer agora? Esse é um alerta para o nosso tempo: é imperativo afastar-se da mediania. Sim. Jesus está muito mais próximo, hoje, do jovem hedonista do que do jovem que vai à Igreja e vive uma falsa experiência mística, isto é,  aquele que expressa o que não é efetivo dentro de si, a saber, o amor concreto; nesse sentido, há um descortinar que a Igreja ainda não compreendeu, no sentido mais profundo de qual é o verdadeiro sentimento das pessoas: para quem está no mundo, no oikoumene, a experiência de Jesus está mais nas pequenas gentilezas do que nos grandes atos heroicos; isso é também efetivo em relação ao próprio ateísmo; afinal, Jesus disse:

"Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos".

 

Alguns fariseus que estavam com ele ouviram-no dizer isso e perguntaram: "Acaso nós também somos cegos? "

 

Disse Jesus: "Se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece".

 

Esse é o grande trunfo da essência ateísta, desconhecido pela Igreja pós-moderna. Se o ateu for sincero, Jesus o salvará no último dia.

 

O julgamento de Jesus não é o batismo com água de arrependimento de João Batista, mas o batismo de fogo, ou seja, de julgamento, de prova e de sondagem do espírito; as obras dessa geração  serão mostradas, porque o Dia a trará à luz; pois será revelada pelo fogo, que provará a qualidade da obra de cada um. Se o que alguém construiu permanecer, esse receberá recompensa. Se o que alguém construiu se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como alguém que escapa através do fogo. Isso se possuir o único e suficiente alicerce que está posto, a saber, Jesus,  aquele que efetivamente ilumina a todos os homens que vêm ao mundo, e não apenas a Igreja, e pode, através do mistério da cristalina e autêntica amabilidade misericordiosa, ser indiretamente conhecido; portanto, o sentido é alegórico: se os cegos agora vêem, esses são os que estão fora da Igreja, estão no mundo, mas vêem Jesus; se os que vêem se tornam cegos, significa que, dentro da Igreja, toda sutil aparência mística adocicada e religiosa na realidade não concretiza a visão mística, que é o amor sólido; os cegos que estão no mundo desconhecem esse pecado, porque são sinceros; os que estão dentro dessa Igreja e dizem ver são culpados perante Jesus, porque tiveram a oportunidade de entender; possuem, inclusive, a chave do conhecimento, mas não conheceram; esse pecado se denomina mentira.

 

Esse é o problema da religião institucional dos tempos de Jesus e também dos tempos de hoje; como solucionar isso? Afastando-se do cristão mediano. Evitando-o para sempre.

 

Verdade é que os esforços de todos aqueles místicos herméticos, notadamente alemães, filósofos neoplatônicos, pensadores humanistas e reformadores minaram a sensação até então, na prática, inquestionável, na Idade Média, da onipresença de Deus na cultura; no período medieval, Deus era respirado pela cultura, nada menos que isso, era, sim, conhecido, e Jesus era efetivo, em que pesem as muitas contradições determinadas; contudo, mesmo no mais árido racionalismo cartesiano do século XVII, em meio a todas as revoluções científicas instituídas por Galilei Galileu, o sentimento da vida de Deus, na Europa, ainda era extremamente sólido, muito forte, significativo; tornava-se burguês, antiescolástico e também intramundano, para utilizar a terminologia de Max Weber, mas ainda assim não havia nada sequer parecido com uma morte de Deus na cultura; a mística alemã também não estava conseguindo ser plenamente efetiva em sua proposta de minar o Transcendentalismo, através de uma metafísica imanentista, porque a Europa permanecia ainda efetivamente cristã, nessa transição, pois conhecia, até as raízes, o impacto de Jesus na própria cultura, mesmo que já de maneira renascentista, protestante e humanista; após a dúvida metodológica de Descartes, não bastava propor uma metafísica spinoziana ou leibniziana; a cultura ainda contemplava a cruz, sem a rosa da razão secularista; então foi necessária outra tática de guerra, que transcendesse o próprio antropocentrismo renascentista luterano; como a Alemanha e sua hermética não se efetivavam concretamente no século XVII, então a França produziu, no século XVIII, a Revolução Francesa e o Iluminismo, radicalizando a proposta de um império secular; Hume já propora, ousadamente, o agnosticismo epistemológico de cultura; Voltaire volta-se para um deus arquitetônico, porque deísta; esse Deus não é a mística profunda alemã, é francês, é outra coisa; a espiritualidade germânica é muito mais profunda; então, finalmente, o protestantismo produzirá Kant, aquele que efetivará a morte de Deus no Ocidente, através de sua crítica de cultura; enfim é derrubada a monumentalidade de Tomás de Aquino, através de um projeto comum a todos os aqueles filósofos modernos; é o mesmo projeto, descontração da escolástica tomista medieval; o mundo já não é mais realista, mas idealista, dialético, fenomênico; Fichte e Schelling encarregar-se-ão do prosseguimento ao projeto de Kant; tendo-se destruído o Deus cultural Transcendente, abre-se caminho para que o neoplatonismo moderno de Spinoza penetrasse profundamente na Alemanha, através da querela do panteísmo, com Mendelsson e Jacob, e o sentimento de Mestre Eckhart,  Paracelso, Böhme, Goethe, Schiller e  Hölderlin finalmente se tornava uma teosofia profundamente cabalística, hermética, imanentista, neoplatônica no sentido moderno da Razão, o sentimento do Brahma cósmico e do próprio hinduísmo; Jesus já não fazia qualquer sentido para o Romantismo alemão; o mais antigo sistema e programa do Idealismo alemão é antigo; já existia em Kant; Imannuel Kant exaltava, em seu prefácio à primeira crítica, o espírito de profundeza ainda, em sua época, não extinto na Alemanha e a metafísica de Wolff; também afirmava, na mesma Crítica da Razão Pura, em sua primeira edição, manuscrito A, que havia um certo mistério em sua Crítica, que é a de que essa obra deveria ser sucedida por um sistema completo de metafísica; o sentimento de Kant nada tem em comum com o ceticismo de Hume; Fichte e Schelling tentaram produzir um sistema para o antigo programa, mas não conseguiram; toda aquela geração romântica tentou fundamentar o próprio Deus imanente, que é um com o mundo; Holderlin, Schelling e Hegel encontram-se na faculdade de teologia protestante de Tübingen e expandem a proposta do misterioso Idealismo Alemão hermético romântico, impregnado de Böhme e Goethe; Fichte e Schelling não conseguiram; será Hegel quem conseguirá modernizar o hermetismo de Proclo, a profundidade neoplatônica de contracultura, e resolverá todas as absurdas contradições de Spinoza, as quais anulavam a diferença; disputando com Schelling, Hegel desprezará depois sua antiga amizade, diferentemente do dom que unia C. S. Lewis  e J. R. R. Tolkien; Hegel não é panteísta; seu imanentismo filosófico de superestrutura é muito mais sofisticado e profundo, porque essencialmente místico e neoplatônico, difícil de ser contestado; produzirá finalmente o Sistema; sua própria Ciência da Lógica já proporá a contradição; é intrincado, dialético; nada tem em comum com Feurbach e Marx; a filosofia analítica cristã o subestimou e sequer tentou compreendê-lo. Nem o poderia, porque precisava estabelecer primeiramente as bases, as provas. Nesse sentido, Alvin Plantinga é, incontestavelmente, o maior gênio de nosso tempo. Acredito que Hegel seja maior do que Whitehead. Junto com Helena Blavatsky, é um dos guardiões do sentimento e pensamento de contracultura.

 

Foi a revolução de Kant que permitiu que existisse hoje esse abismo, que é a existência do cristão mediano pernicioso, cuja função precípua é atrapalhar a Grande Guerra.

 

Explico.

 

Após as duas grandes Guerras Mundiais, Auschwitz, Hiroshima, regimes totalitários de esquerda e de extrema-direita, o delírio secular iluminista positivista e o sonho de uma ordem e progresso sem Deus entraram em declínio,  inaugurando a era líquida moderna da Guerra Fria, o abismo da incerteza da pós-modernidade, era desconstrutivista do significado da teoria como possibilidade de compreender o próprio mundo, epistemologia rigorosa e científica, morte de todas as metanarrativas, relativismo niilista de fim da possibilidade moral no sentimento humano enquanto ética despedaçada, razão prática fracassada, império telemita da dúvida, ausência de segurança e expectativa de uma Cruz que acolha misericordiosamente o mundo; ora, esse império da dúvida agora não realiza um sentimento de ateísmo nietzschiano, mas uma perspectiva de Deus muito parecida com o sonho de John Caputo; é impossível que a certeza da existência de Deus subsista na cultura pós-moderna, apenas por causa de Kant; não por causa do ceticismo de Descartes ou de Hume, mas devido a Kant; e esse é o sentimento originário da invenção líquida do cristão mediano do século XXI; ele não acredita que Deus exista de forma objetiva, de modo efetivo e concreto; ateísmo prático disfarçado de alta espiritualidade, ele jamais levará à sério a tese da radicalidade mística que existe em Francisco de Assis e Teresa de Liseux, ou a mística esponsal de Teresa de Ávila e suas Moradas do Castelo Interior, cuja entrada é a oração, conhecimento de ciência altíssima, suave e contemplativa, o único amor invencível a Jesus; para os místicos, Jesus é habitual, normal, porque muitas vezes no dia encontrado, portanto bem conhecido, a ponto, inclusive, de o místico jamais ser por ele surpreendido; o cristão mediano despreza essa mística porque está imbuído de uma experiência mais interpretativa e teatral da experiência de vida, como que de um sonho, e ama a Jesus de um modo peculiar e distinto da espiritualidade cristã efetiva, que é o sentimento dos místicos; ele admira Jesus de algum modo, mas jamais o conheceu de forma concreta, isto é, efetivamente, e não acredita em sua existência como solidamente evidente na cultura mesma, mas o tem em uma perspectiva enfeitiçada, onírica e hipnótica; portanto, infantil, rasa, ambígua, não totalmente clara, não se alçou até o conhecimento, é nebuloso, jamais confiável, é mistura, é claro que é mentira, voluntária; é mentira; estratégia para fugir da ira, da prova final, batismo; e ainda assim, imitando os místicos, que raramente existem – se é que exista algum outro hoje no mundo,  e isto é efetividade –, com eles compete,  através de um sentimento de simbiose perene, irremediável; jamais trevas ou luz – nunca o intentaria –, mas penumbra; por mentir, realiza a única essência realmente ontológica do anticristo, que é a de não ser o oposto de Jesus nitidamente, mas parecer-se muito com ele; por isso, nem mesmo os místicos herméticos conseguirão causar tanto mal e sentimento ambíguo ao sentido do que é a Igreja quanto é a mais iníqua de todas as invenções pós-modernas: o sentimento profundo e raso do cristianismo mediano, o Aión informal e não determinado que também age no mundo, sem conhecimento planejado, sem inteligência e ciência concreta,  porque jamais estudou qualquer coisa; desconhece qualquer espécie de sentimento de magia; é, portanto, determinadamente, o verdadeiro Abismo da Igreja.

 

O místico hermético, realizando o Aión formal como arquiteto do Chrónos, também presente todos os dias na vida da Igreja, é um outro sentimento; calcula; planeja; jamais subestima a verdadeira essência dos cristãos místicos.

 

 

Alvin Plantinga. Batalha vencida. Morte do ateísmo.  Cristologia hoje. Já inaugurou-se o Neomedievalismo

 

Contudo, em 15 de novembro de 1932, nascia Alvin Plantinga.

O maior gênio vivo de nosso tempo foi aquele que introduziu, pela primeira vez na História, a existência de Deus dentro do próprio debate ateísta da universidade. Essa é uma guerra que, para a Igreja, jamais foi perdida. Graças a Alvin Plantinga.

 

Alvin Plantinga é mais importante do que Agostinho, Tomás de Aquino e também é mais relevante do que Wittgenstein e Quine, para a história da filosofia. É maior e também muito menos desesperado e mais cristalino do que Kant e Hegel. Logicamente fundacional, permanece  meticuloso. Modesto, desconhece sua importância para a História. Rivaliza com a importância de Aristóteles e Frege, porém os transcendeu no que concerne à reinvenção da lógica e da epistemologia, salvando a lógica modal, ao contrário de Quine, e introduzindo, pela única vez na História, a dúvida entre os ateus acadêmicos em relação a suas próprias convicções lógicas e epistemológicas a respeito da inexistência de Deus.

 

Nesse sentido, podemos dizer, sim, que Alvin Plantinga é o maior filósofo de todos os tempos. Também é o maior gênio de toda a Humanidade.

 

Com todo respeito e carinho que possuo pelos meus amigos e brilhantes filosóficos céticos atuais,  e eu já passei por diversas noites severas de ceticismo, posso afirmar que o ateísmo filosófico hoje está morto. Sepultado. Isso jamais teria acontecido se não tivesse nascido Alvin Plantinga.

 

A sua epistemologia e o próprio argumento ontológico modal, assim como o todo de sua superestrutura não propõem argumentos probabilísticos e indutivos, mas fundamentam a monumentalidade originária.

 

Alfred North Whitehead, da tradição analítica, lógico, matemático, professor do filósofo cético Bertrand Russell, não era ateu, tampouco cristão, e escreveu Process and Reality: An essay in Cosmology, conforme o sentimento hermético de Hegel.

 

A mística de Teresa de Ávila e a monumentalidade de João da Cruz, por sua vez, não são irracionais. João da Cruz se formou em filosofia na Universidade de Salamanca. Sua obra é difícil, monumental.

 

O cristão é diferente do deísta, é diferente de Aristóteles, Voltaire e Antony Flew. Esse é um alerta para o nosso tempo e para as próximas décadas.

 

Com os atuais avanços de Richard Swinburne, William Alston, Peter van Inwagen, Robert Audi, Robert Adams, Willliam Lane Craig e J. P. Moreland, podemos dizer que, estabelecendo as provas da existência de Deus, a filosofia avança  paralelamente também para a própria espiritualidade de ortodoxia e também contemporânea de cultura, para o que é Deus para nós além do fato de que exista, que sentido há na Cristianismo que não é encontrado no monoteísmo de outras espiritualidades abraâmicas, o que é a ontologia da Igreja, a fundamentação do que é esse Deus que se relaciona através da ciência de oração contemplativa mais profunda, o que é a obra de João da Cruz e ir além de João da Cruz. 

 

O Neomedievalismo é inaugurado após o recente fracasso da morte de Deus na própria universidade e na cultura. Esse novo tempo é mais semelhante ao sentimento e sentido da Idade Média do que à estranha modernidade. Tempo em que fará mais sentido acreditar no espírito e no mundo espiritual, em Efésios 1 e no embate entre duas místicas e entre duas Igrejas Místicas do que no fascínio pela matéria. Não era da matéria, mas do mistério da consciência; o ateísmo não fará mais qualquer sentido na cultura do Neomedievalismo; as comunidades católicas, ortodoxa e protestante estão desunidas, estão distraídas; no âmbito do Cristianismo, só existe uma Igreja; toda ela é católica, porque Jesus a fundou; a comunidade ortodoxa e a comunidade protestante fazem parte dela; desconheço Constantino; conheço Atanásio, João da Cruz; nós, protestantes  devemos nos arrepender do erro de Lutero; isso não significa migrar para a comunidade católica; continuemos protestantes! (escrevo isso aos protestantes). Há muito trabalho duro para ser feito em nossa comunidade, e coisas maravilhosas, sim, têm sido feitas; mas é um pecado imperdoável mentir sobre a história; a armadilha do Renascimento. Esse é um alerta: só existem quatro coisas que por todos os cristãos devem ser feitas. Primeira: orar pela unidade da Igreja. Segunda: desejar a unidade da Igreja. Terceira: lutar pela unidade da Igreja. Quarta: amar a unidade da Igreja.

 

William Wilberforce e Martin Luther King são exemplos de grandes santos protestantes.


O protestante é fascinado por Paulo de Tarso. Alguns amam até a história de Ester. A experiência de Ana é considerada significativa. Até mesmo Jezabel é bastante citada entre os protestantes. E a Anunciação Mística é muito mais importante para a história da humanidade do que Romanos 9. Será que é impossível, para nós, protestantes, ao menos amar Maria? Eu duvido.

 

Do contrário, é impossível a unidade da Igreja. Se só existem duas Igrejas, e nenhuma outra realidade há nesse mundo, como guerrear desunidos? Como descumprir os anseios da oração sacerdotal de Jesus? (Jo 17.20-21)

 

Quando se encerra o período transitório e líquido da pós-modernidade? Quando se inicia o Neomedievalismo? Podemos dizer que começa hoje! Evidentemente, também a Grande Guerra. Realizada no conceito, guerra de mentes.

 

Em toda guerra existirá espionagem, infiltrações, influências. Tal qual na Guerra Fria.

 

No século XXI, estamos na Grande Guerra, a Guerra Final, a partir do sentimento recente,  que é o da Grande Apostasia determinada, também abertamente manifestada em declarações de ódio e rebelião contra a soberania que no Salmo 2 já  é expressa, ódio presente e declarado abertamente em algumas bandas musicais

 mais recentes; o sentimento de Grande Apostasia é mudar de lado, tornar-se obscuro, mudar de opinião, trocar de time,  ir para o outro exército; isso aumentará muito rapidamente; a Grande Apostasia da qual fala Paulo de Tarso será quase universal; hoje, o Deus escolhido por muitos não mais é a luz que raiou na Galileia, mas uma falsa aurora (Isaías 11.12). Jerônimo, em sua Vulgata, cometeu um erro de tradução.

 

A pesquisa acadêmica em filosofia hermética jamais é aconselhável para o cristão, a não ser que ele esteja seriamente vocacionado para desconstruí-la. A defesa da fé é radicalmente distinta da mera curiosidade.

 

A santificação para a Guerra se denomina terror, força e coragem. Processo, telos, necessidade e culminação naquilo que no futuro será Temível.

 

Nas próximas décadas, a Nova Era de contracultura, esse Neoromantismo, será mais desafiadora para a Igreja do que o próprio ateísmo.

 

O sentimento do cristão hoje é ambíguo. Tornoa -se impossível, hoje, discernir quem realmente é o cristão. Não é mais possível. Tal aporia apenas avançará nas próximas décadas. Por isso, efetivem o discernimento místico. Através da reação dos poucos cristãos místicos, armados para essa guerra, o que há é a fundamentação de uma verdadeira Cristologia e de uma sinergia, onde o amor líquido jamais será permitido, era do discernimento profundo, a oração entendida como a principal ciência  para a Igreja, a aniquilação do sentimento de mediania, o que traz agora à luz a mentira determinada no mundo; o império da Igreja  é agora entendido como plenitude que enche todas as coisas em qualquer circunstância, conhecimento e poder que é procedido por noites, a noite do sentido ativa, a noite do sentido passiva, a noite do espírito ativa, a noite do espírito passiva, as quatro grandes noites, isto é, João da Cruz, e também seu belo desposório místico, seu matrimônio místico e, depois, outra noite ainda mais terrível, por João da Cruz desconhecida, somente para os que forem chamados para a Grande Guerra do século XXI, a noite bélica mística, superada pela esperança, a qual culminará, enfim, em uma outra união, a união temível mística.

 

A mística não é o âmbito da irracionalidade e do emocionalismo. A mística de ortodoxia nunca foi novidade para a Igreja, embora não ainda plenamente fundamentada e fundada do ponto de vista filosófico.  Que seja a partir de agora! Desde Orígenes, os pais do deserto, passando por Antão do Deserto, Pacômio, Bento de Núrsia, Evágrio do Ponto, Cassiano, Máximo Confessor, Gregório de Nissa, Hugo de São Vitor, Ricardo de São Vitor, Bernardo de Claraval, Boaventura, Paulo da Cruz, Catarina de Sena, Faustina Kowalska, assim como a filosofia foi importante para a apologética do período da Patrística, a mística sempre fez parte das próprias estruturas do que é a Igreja, espiritualidade agora bloqueada pelo humanismo universal ocidental inventado pelo Renascimento; na realidade, existem duas místicas: a mística imanentista hermética e a mística transcendentalista cristã. Na primeira, Deus está misturado com o mundo, não é um ser pessoal e relacional, é energia, vibração, intracósmico (hinduísmo, agora estruturado na teologia monumental de Helena Blavatsky), e portanto o homem também pode ser Deus, não discernindo, mas conhecendo o Bem e o Mal. Na segunda, Deus está separado do mundo, está fora do Universo, permanece fora do espaço e do tempo, é intratrinitário, é um ser pessoal e se relaciona com o homem; a união mística de João da Cruz e Teresa de Ávila e também a união temível mística que aqui proponho é através do amor, e não uma união de substâncias; portanto, essencialmente transcendentalista, e não teúrgica.

 

O conhecimento neoplatônico é fechado. O conhecimento do Carmelo é aberto.

 

O poder teúrgico se dá pelo que é suprassumido, conforme Hegel. O poder esponsal se dá por noites, conforme João da Cruz.

 

O fim da história e o Saber Absoluto, para o sentimento carmelita, procedem da própria Transcendência. O fim da história, para João da Cruz, é a ausência de Abinadab  na História da Igreja, e seu completo esquecimento.

 

A Cristologia de João da Cruz faz sentido, assim, filosoficamente, em nossa época.

 

Assim afirma Karl Rahner: “o cristão do futuro, ou será místico ou não será cristão”.

 

O Neomedievalismo inaugura a verdadeira Cristologia transcendentalista para o nossa tempo, aniquiladora de toda ambiguidade, discernimento do Bem e do Mal,  onde nenhuma mediania será conhecida. É tempo de discernir, finalmente, quem é o verdadeiro cristão do futuro que começa hoje.

 

Bibliografia

 

Crítica da razão pura, Imannuel Kant,  Fundação Calouste Gulbenkian, 9ª. Edição, 2018, Lisboa

 

Obras completas, João da Cruz, Editora Vozes, Petrópolis, 2002

 

Plotino: teurgia e negatividade, Pr. Dr. José Carlos Marçal

 

Fenomenologia do Espírito, Hegel, Editora Vozes, 9ª. Edição, Petrópolis, 2002

 

Hegel, Charles Taylor, Realizações Editora, São Paulo, 2014

 

 

 

 

sábado, 18 de junho de 2022

Eu nasci para a arte e para o amor

“Eu nasci para a arte e para o amor”; assim parafraseio Tosca, de Puccini; hoje, considero que mesmo a partir de uma perspectiva cética, os Quatro Grandes Tratados de João da Cruz são o que de melhor se escreveu em toda a história da humanidade; a espiritualidade é aqui entendida como um caminho de plenitude, a qual só pode ser encontrada no amor místico, exatamente conforme é expresso por essas grandes obras; vejo-as como também válidas para o âmbito do ceticismo e para quaisquer projetos filosóficos de grande envergadura, isto é, não dependem de crença religiosa, mas são uma expressão: aquilo que pode direcionar-se ao humano, independentemente da fé em qualquer divindade, pois o que nos é mais docemente próximo e imediato é o homem; cristãos e ateus concordam que o amor ao humano é algo bom; a obra de João da Cruz deve ser estudada e vivenciada para fins de transbordamento de tal amor a toda a humanidade; apesar disso, tal empreendimento somente será efetivo em referência àqueles seres humanos que valem a pena, aos que não são completamente insensíveis à linguagem do amor.

“Eu nasci para a arte e para o amor”; reside, aqui, o significado da estética que é para a arte e para a vida enquanto contemplação, enquanto espiritualidade que estabelece uma existência em forma de arte e beleza, e esse senso estético empreende o próprio encontro com a alteridade, com aqueles espíritos que não são totalmente odiosos; não efetiva, necessariamente, tal senso estético, o sentido da perfeição relacional, mas a aposta na beleza; quando o surpreendente adágio atribuído a Teŕesa de Calcutá declara: “a paz começa com um sorriso", nem sempre isso se concretiza; pode ser que, em muitos momentos, sejamos retribuídos com grosserias insuperáveis; contudo, conviver é arte política; há momentos nos quais barreiras consideradas até então irredutíveis se rompem em um contexto de planejada gentileza política, o que pode encaminhar relações cotidianas não necessariamente para a amizade, mas para a paz possível; isso ocorre porque a doçura interior pode superar muros aparentemente intransponíveis, nem sempre através de uma atitude de cordialidade aberta, mas também de coalizões necessárias; esse é um caminho de doçura sutil e de diplomacia; ser admirado não consiste em ser agradável a muitos, mas em fazer concessões possíveis a muitos; em momentos em que a paz não se torna possível, a firmeza de espírito faz-se eminentemente necessária; é a firmeza do amor autorrespeitoso em direção ao mal.

Por que a música é a arte mais apreciada? Por que, dentro de um transporte público, a maioria dos presentes, por meio de smartphones e fones de ouvido, ouvem música? Ouvir muita música é uma experiência estética inerentemente necessária ao espírito humano. Decididamente, importa, não apenas ouvir música, mas a boa música.

O sentido da estética não reside apenas na arte em si, mas no que ela pode expressar. A adoração gospel não realiza apenas música, mas uma espiritualidade coletiva e irreversivelmente complexa; a estética deve ser uma atitude de beleza essencial e existencial, coragem para amar para fora. “Eu vivi para a arte e para o amor", afirma Tosca. Isso significa que o amor e a arte estão enlaçados em um mesmo significado essencial filosófico: fazer da presente vida uma experiência eminentemente estética de existência.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Introdução à ciência de santidade

Estar vinculado a uma instituição religiosa, ostentar o nome de cristão, possuir um grande conhecimento teológico ou ser um ativista religioso é algo que confere sensação de segurança, mas nenhuma garantia de salvação. Ser uma pessoa sem vínculos institucionais religiosos, não ser um cristão declarado, não possuir nenhum conhecimento teológico, exercer uma religião diferente do Cristianismo ou ser até mesmo um cético não corresponde, necessariamente, à ausência de salvação. A era da pós-modernidade constitui-se como algo culturalmente sobremodo complexo, de maneira que ostentar ou não o nome de cristão tornou-se insuficiente para a definição soteriológica; é necessário redefinir, filosoficamente, o conceito de salvação.

A cultura pós-moderna é absurdamente distinta da cultura medieval. A filosofia cética inexistia no medievo. A civilização era teocêntrica e entendida como sagrada. O mundo era muito menos convidativo ao ceticismo, à ausência de aderência cristã; existe, entre ambas as culturas, um imenso abismo. O Cristianismo desmoralizou-se com o tempo, após a sucessão de todos aqueles grandes movimentos humanistas filosóficos históricos, de modo que hoje o sentido do que é ser cristão possui muito mais relação com o íntimo de cada ser que vive em nossa cultura do que com a fé que ele professa. Na civilização pós-moderna, o sentido de ser salvo não mais é dizer: “sou cristão”, tampouco o significado de estar perdido o declarar: “não sou cristão”; subsiste, antes, sobretudo, a maneira de relacionar-se com a humanidade. O significado precípuo da salvação é a não desistência em relação ao humano. O sentido maior de perder-se é o desistir do humano. Não a humanidade como conceito; trata-se do relacionar-se cotidiano e do modo de reagir diante das manifestações abrangentes de maldade, a saber, diárias. A atitude precípua de salvação consiste na capacidade de permanecer dócil à humanidade, mesmo em face da hostilidade generalizada; veja-se: não se trata do fato de que não se deve, às pessoas hostis, a necessária veemência, mas, sim, de que a atitude para com os homens em geral – muitos dos quais não são hostis – não passe, através da cauterização da consciência daquele que reage, a ser a da impiedade generalizada para com todos, inclusive, com os bons, de modo que, para aquele que tende a cauterizar-se, a hostilidade de alguns – ou, mesmo, de muitos – é apenas o pretexto esperado para o desenvolvimento da hostilidade generalizada, para a qual tendia, desde o início.

Desse modo, enquanto o místico é cristão por essência, aquele que, não sendo o místico, permanece dócil ao humano, torna-se cristão por semelhança. Destarte, o cristão mediano constitui-se um cristão no segundo sentido. Ele é, como o que não professa o cristianismo, mas o é por semelhança, aquele que não vive a santidade essencial e, sim, a normal mediania. O cristão mediano, embora professe uma teologia semelhante à do místico, no que tange à espiritualidade assemelha-se ao não professo, e possui com esse muito maior intimidade do que com aquele, ao qual jamais logra distinguir. Possui, também, afinidade com o que se caracteriza pela desistência em relação ao humano, mas ostenta camuflagem cristã. A pós-modernidade constitui-se, assim, o âmbito da ambiguidade absoluta, dentro da qual se tornou, pela ausência generalizada de discernimento, indistinguível, o cristão. Contudo, é época transitória; o neomedievalíssimo vindouro será a era em que será inevitável, pela reação dos místicos, o autêntico discernimento, mesmo que seja instituído através de avassaladores e pouquíssimos, isto é, finalmente, para essa era, os verdadeiros cristãos.

É perfeitamente possível ser um cristão mediano, viver uma vida de santidade mediana e ser salvo, do ponto de vista do Cristianismo. A salvação não é privilégio dos grandes santos, mas de todo aquele que, através do esforço – a salvação requer uma dose importante de esforço –, procura amar verdadeiramente a Deus e ao próximo; esses serão misericordiosamente lembrados por Deus. Os misericordiosos alcançarão misericórdia. Contudo, o santo é aquele que vai além dos atos misericordiosos, os quais, para ele, constituem apenas o ponto de partida para uma jornada de intimidade e união com o Crucificado. Ele deseja ir além: alcançar o cume da perfeição. Esse gracioso estado é possível de ser alcançado nessa vida, e sobre ele escreveram os santos e, sobretudo, os místicos – isto é, os maiores entre os santos. Para todo aquele que almeja vivamente atingir o estado de perfeição, é necessária a introdução à ciência de santidade.

Contudo, o esforço, isoladamente, é inútil para a salvação e para a introdução à ciência de santidade. Em relação à introdução é necessário que haja, antes, um grande Encontro, um marco inicial, e alcançar a percepção de que a História flui através da doce preciosidade da Galileia, percepção difícil de ser atingida em meio aos desencontros do ceticismo – anacrônico – e da atual espiritualidade imanentista, para que possa haver, a partir de então, a cooperação de um Outro; o Encontro aponta para a Misericórdia como sendo apenas o ponto de partida, a partir do qual a alma será introduzida no mistério do caminho em direção à união divina, através das noites de contemplação e do caminho estabelecido, teoricamente, por João da Cruz, o qual é instituído, na filosofia mística neojuaniana, como Sistema e Ciência.

A visão da Paixão, ao incidir sobre o cristão, revela, imediatamente, Misericórdia, e o imerge no arrependimento profundo. É, a partir de então, convidado a um relacionamento pessoal com o Crucificado, o qual progressivamente fluirá como um rio. Há um desejo profundo de santidade. Não há, ainda, entretanto, a santidade profunda. É preciso que descubra a senda mística, através do contato com os escritos dos místicos da Igreja. Mais do que isso: é desejável que encontre a obra de João da Cruz, e é necessário que seja introduzido na Noite Escura, ou passivamente, por meio do Espírito que, intimamente, a ela conduz, ou ativamente, por meio da própria iniciativa, através da privação dos deleites sensíveis, temporais e espirituais. Embora existam muitos escritos dos místicos, subsiste o fato de que toda a mística foi sistematizada por João da Cruz, em uma síntese, embora não institua, ainda, o Sistema e a Ciência, no sentido moderno – pois, desde Descartes, faz-se necessário que, em filosofia, prevaleça o rigor do método. Toda a hagiografia da História da Igreja, toda a sua cultura, a sua mística e a sua santidade devem ser estudados a partir de um centro único irradiador: a joia do Carmelo, isto é, o Místico. A partir do Místico, existe uma teoria que, na filosofia aqui proposta, virá a se tornar, metodicamente e de maneira fundacional, Sistema e Ciência, a mística Transcendente, o neojuanismo. A partir da Noite Escura e do descobrimento da senda mística, o cristão é introduzido na ciência de santidade e pode lograr, enfim, avanços antes inimaginados, trilhando o árduo e deleitoso caminho da hagiologia.

O deleitoso caminho de santidade é necessariamente progressivo e lento, visando a um fim. O fim é a união de amor, a união divina, também denominada, na tradição cristã, união mística, matrimônio espiritual ou casamento místico. Para chegar a tal ápice, precedem a noite escura do sentido, a noite escura do espírito e o desposório espiritual, através da ascensão nas experiências purgativa, iluminativa e unitiva da vida cristã substancial, espiritualidade que remonta a Orígenes, e tem como ponto culminante a era de ouro, a espiritualidade esponsal do século XVI de Teresa de Ávila e do Místico. A união mística é da alma, o místico, e do Amado, o Verbo, a qual é interpretada, pelos místicos, no relacionamento retratado no Cântico dos Cânticos, texto que possui, para os místicos, um sentido estrutural. Orígenes e diversos místicos escreveram comentários místicos sobre o texto bíblico que possui significação fundamental no Cântico Espiritual de João da Cruz, livro que é o centro da obra do carmelita, unindo os significados de Subida do Monte Carmelo e Noite Escura, que tratam da noite escura e antecedem o matrimônio espiritual e Chama Viva de Amor, que trata do deleite matrimonial pós-noite escura. Em tal estado, a santidade torna-se plena, através do fortalecimento da vontade, estado de plenitude de coragem, fortaleza e discernimento, os quais tanta falta fazem em um período no qual predominam o analfabetismo cristão, a vontade ausente e a reprovável, onipresente e inútil mediania.

Sobre todas as coisas das quais se deve cuidar, a principal, sobre a qual o místico deve concentrar amorosa atenção, para que avance com maior rapidez e profundidade sobre os estágios da ciência de santidade devem ser, sem dúvida alguma, os olhos. Através desse amor, atingirá  rapidamente níveis elevados e antes inimaginados em todo o trilhar da hagiologia. É necessário, também, certa dose de simplicidade e doçura em relação ao humano e, acima de tudo, um amor a Jesus que se eleve corajosamente acima de todas as criaturas. Que se dedique à oração contemplativa e silenciosa e ao colóquio diário com o Amado. Que estime a solidão e que aprofunde a vastidão interior. Que estude, estime e ame o conhecimento, o continuo pensar e debruçar teórico. A filosofia mística neojuaniana é predomínio da vontade, mas possui, de maneira fundante, sólidas raízes no entendimento. É necessário trilhar o caminho do sofrimento e da adoração silenciosa, através da misteriosa contemplação do Crucificado e da identificação com o seus sofrimentos. Somente assim, alcançar-se-á o deleite firme e inconfundível do sublime e tranquilo estado de perfeição.

A partir da noite escura torna-se, o cristão, um contemplativo, um místico. Contudo, não basta adentrar a noite escura. É necessário trilhar o caminho proposto pelo filósofo carmelita no Cântico Espiritual. É preciso passar da dolorosa noite escura do sentido à mais temível noite, a do espírito. É preciso adentrar o desposório espiritual (que antecede a união mística). É desejável, enfim, introduzir-se no tão esperado matrimônio espiritual, após atingir, finalmente, a coragem mística, aquela violência necessária contra si mesmo na progressão radical de santidade, onde, através do sofrimento e desnorteamento – onde não há guia! (nem mesmo o Mistico) –, finalmente se diz: “a vós, aves ligeiras (...) vos conjuro” –, quando cessa-se a luta e adentra-se, enfim, o horto ameno. É necessário seguir o trilhar do Cântico Espiritual e superar a temível noite escura do espírito.

O principiante contempla o amor, mas não consegue vivê-lo. O adiantado vive o amor, e sofre dolorosamente, oferecendo a face ao próximo. O perfeito não mais sofre o descaso das criaturas, pois se preparou longamente para, finalmente, discernir todas as coisas e enfrentar o aión. Esse longo e dificultoso caminho pode ser percorrido mais rapidamente se houver o específico cuidado, como acima citado, ao olhar amável. É necessário trilhar o caminho do Cântico Espiritual e atingir a segurança da vontade livre e a coragem mística, impiedosa contra si mesmo nos últimos estágios da purificação. É preciso compreender que tal purificação, necessária para se atingir a união mística, é o centro da noite escura, e não os sofrimentos que nela ocorrem, como se fossem um fim em si mesmos. Quando adentra-se o repouso espiritual, preparada estará a alma para o verdadeiro discernimento e as verdadeiras e grandes batalhas. O aión e as linhas que tecem as danças constantes das marionetes temem a união mística e o discernimento. É necessário aprofundar-se, árdua e corajosamente, no caminho proposto pelo Místico. O tempo de viver a mediania já passou.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Da Escritura – a tradição mística, o universo humano, a questão cosmológica e o sentido da linguagem

A genialidade de três pensadores – Martinho Lutero, Nicolau Copérnico e Charles Darwin – legou, à cultura ocidental, três abalos simbólicos históricos e três aporias; a separação entre: tradição mística e Escritura, Criação e Cosmos, Criação e Homem. A filosofia cristã permaneceu por séculos sem que se pusesse termo a essas dificuldades, até que a grande revolução na filosofia do Cristianismo das últimas décadas, que tem como expoentes precípuos Richard Swinburne, Alvin Plantinga e William Lane Craig, encontrou a filosoficamente respeitável solução ao problema exposto: a filosofia natural é desenvolvida como algo tão importante quanto a Escritura – em William Lane Craig, a Ressurreição de Cristo e o argumento cosmológico kalam são postos à prova em relação às verdades da História e do Cosmos –, e fatos empíricos  como o Big Bang e a Evolução das Espécies são considerados como assuntos normais da investigação científica do Cristianismo, com soluções filosóficas que não colocam em dificuldade a fé da Cristandade, mas, antes, a enaltecem, concedendo rigor epistemológico à tradição metafísica da grande cultura. Contudo, essas três aporias requerem, ainda, impetuoso debruçar filosófico, por parte do filósofo cristão, no que diz respeito às suas vastas implicações.

Lutero separou a tradição mística da Escritura, e a fé da razão e das obras, canonizando o humanismo. Copérnico destituiu a Terra do centro da realidade cósmica, estabelecendo grande crise para o pensamento cristão. Aristóteles era a base da cosmologia medieval; foi gradual a absorção do impacto, por parte da cultura, e a recepção do copernicanismo, mas não de modo que deixe de acreditar, hoje, grande parte dos cristãos, em um Universo impessoal, mecanicista, com estrelas e astros mais antigos do que a Terra, com buracos negros, pulsares, quasares, matéria escura, uma infinidade de galáxias, nebulosas, e em um Cosmos sempre em expansão, a partir do Big Bang. Ao olhar para o Gênesis, o adepto do Cristianismo pode, por um momento, duvidar, por exemplo, de que muitas estrelas e o Sol sejam mais antigos do que a Terra, mas se mantém, ainda assim, convicto de que existem, no espaço sideral, outras galáxias e uma diversidade de estrelas e sistemas solares semelhantes ao nosso. Contudo, tudo se torna diferente quando se volta para Darwin; o evolucionismo ainda não foi plenamente assimilado pela nossa cultura. Primeiro motivo: o darwinismo parece contradizer mais claramente Gênesis e toda a Escritura do que o copernicanismo. Segundo motivo: o fato de o homem provir de outra espécie parece contradizer o privilégio e nobreza concedidos pelos textos bíblicos ao homem, ser racional dotado de alma, razão e livre-arbítrio. Terceiro motivo: o evolucionismo é associado, historicamente, ao ateísmo e ao acaso, e aparenta ser desvinculado de todo o sentido teleológico e de valor que a Escritura atribui, de forma especial e singular, à Criação e ao homem.

Por todas essas razões, parece, ao leitor do texto bíblico, muito menos dificultoso crer no Big Bang, em outras galáxias, buracos negros e pulsares, e que a Terra gira ao redor do Sol e é ínfima em relação ao Cosmos, do que acreditar no evolucionismo e que o homem e todos os primatas possuem um ancestral em comum. Contudo, ao crer no Big Bang e em um universo complexo e antigo e, ao mesmo tempo, não acreditar no darwinismo, mas literalmente no relato bíblico da Criação, surge, ao cristão, uma dificuldade: o Criador haveria, desse modo, criado, há bilhões de anos, um Cosmos complexo a partir do Big Bang e, ao mesmo tempo, criado o Universo em seis dias, uma Terra mais antiga do que o Sol e as estrelas, e feito o homem a partir do barro. Ora, ambas as explicações para o surgimento do mundo são irreconciliáveis. O Criador não pode ter criado o Cosmos a partir do Big Bang e, em seguida, formado a Terra mais antiga do que o Sol e as estrelas e o homem a partir do barro. A explicação darwinista, por mais que pareça estranha – ainda – à fé cristã, harmoniza-se mais com o fato de Deus ter criado o Universo a partir do Big Bang – William Lane Craig, inclusive, demonstra que a teoria cósmica da explosão inicial é uma forte evidência científica a favor da existência de Deus –, de modo que a Terra se formou a partir de gases, sendo inicialmente quente ao extremo, esfriando-se lentamente e dando origem, posteriormente, ao RNA, ao DNA, às moléculas, aos seres unicelulares, aos animais aquáticos e, enfim, às criaturas complexas terrestres. Ora, ao cristão, é perfeitamente possível descartar a evolução, mas nesse caso ele deverá explicar como o relato bíblico da Criação harmoniza-se com a existência de outras galáxias, um Cosmos complexo e de estrelas mais antigas do que a Terra. Teriam, as outras galáxias, surgido após a Terra? O Criacionismo da Terra Jovem – descartado por William Lane Craig, Alvin Plantinga e Richard Swinburne, os maiores filósofos cristãos atuais, tão importantes quanto Agostinho, Tomás de Aquino e Duns Scoto – deveria explicar essas perplexidades em uma teoria tão complexa quanto a do Big Bang e do evolucionismo. A teoria darwiniana é mais condizente com um Cosmos antigo e complexo. Contudo, não há contradição entre o pensador cristão estar alinhado com as mais recentes e complexas descobertas científicas e, ao mesmo tempo, crer em Deus. Desde que não tome o relato bíblico da Criação de forma literal, mas de forma simbólica. De acordo com William Lane Craig, mesmo Agostinho não interpretava os seis dias da Criação de forma literal. É claro que, ao alinhar a crença bíblica com o pensamento científico atual, o cristão terá que lidar com uma série de dificuldades, como a questão do pecado original, a existência da alma e do Adão histórico. Essas aporias têm sido levadas em consideração nas investigações de Craig, e devem ser enfrentadas diligentemente pela filosofia cristã.

Diferentemente do arianismo e do modalismo, o darwinismo não é uma heresia, do mesmo modo que não o é a teoria copernicana. Todavia, é um fato que a posição de Darwin, assim como a de Copérnico, trouxeram um grande abalo para a cosmovisão cristã. Contudo, há um abalo pouco investigado na História, que é a ruptura luterana entre tradição mística e Escritura, e a afirmação do reformador alemão do literalismo bíblico, de modo a descartar toda a rica interpretação alegórica da cultura patrística e medieval acerca da Bíblia. Em relação a esse assunto, há um belíssimo texto do historiador cristão Peter Harrison, da Universidade de Queensland, traduzido por Paulo Brabo (1). Os antigos não desprezavam a riqueza de possibilidades de interpretação do texto bíblico como um livro rico e de revelação mística e multiforme ao homem. Para a Cristandade pré-luterana, a Escritura possui grande importância, em igualdade com a rica tradição eclesial, os filósofos do Cristianismo, os grandes teólogos, os doutores, os credos, os documentos da Igreja, as hagiografias, as histórias dos santos, os místicos, os mosteiros, a cultura sagrada cristã. Deus se revela à cultura a partir de um todo, a Igreja, manifestação mística do Verbo que se encarnou. A partir de Lutero, a Escritura se desprende desse todo, e passa a ser a única autoridade realmente relevante para o cristão, de modo que qualquer dificuldade bíblica representa um sério abalo para a sua cosmovisão, mas tal não ocorre em relação à cultura, aos santos, à tradição. Lutero promove a separação entre tradição mística e Escritura, a qual deixa de possuir sentido eminentemente místico e simbólico, passando a se tornar um livro com um significado literal e único. Contudo, assim não é a Escritura. O livro do Apocalipse, por exemplo, é repleto de simbolismos – as cabeças e os chifres da besta, a Grande Meretriz, não são literais –, mas também há, na Escritura, profecias literais e relatos históricos. No caso do relato da Criação, o que há é um simbolismo; o Universo é complexo e antigo, e em relação a isso, encaixa-se perfeitamente a visão darwiniana de mundo, ainda que tal evolução não tenha sido fruto do acaso cego, mas tenha sido, com um projeto de finalidade, guiado por Deus.

Isso não faz sentido à luz do literalismo luterano! Porém, pode ser entendido se a cultura cristã é compreendida como um todo maior e abrangente do que somente a Escritura, a qual é constituída não apenas de profecias literais – algumas das quais, inclusive, já se cumpriram –, de relatos históricos fidedignos, mas também de significado simbólico. Os escritores bíblicos nem sempre recebem uma inspiração dos fatos tal qual realmente são e ocorreram. Tal constatação filosófica difere muito da demitologização bultmanniana; mesmo assim, é suficiente para nos inserir em certa perplexidade e solidão cósmica, de modo a requerer uma solução das três grandes aporias suscitadas, em nossa cultura, pela genialidade de Martinho Lutero, Nicolau Copérnico e Charles Darwin, três grandes humanistas que despontaram no alvorecer de nossa complexa e desafiadora modernidade.

Passarei, a seguir, à solução a essas três grandes aporias de nosso tempo.

A Escritura não pode ser posta à parte da tradição mística da grande cultura, mas é uma pequena parte dela. Desse modo, é um livro com profecias literais e relatos históricos, mas também com conteúdo simbólico. O que determina se determinado conteúdo bíblico é histórico ou simbólico é a própria História. A História, sendo compreendida como sagrada, passa a ter primazia sobre a própria Escritura; a História é sacra, e a Escritura é uma pequena parte dela. Tanto a Escritura quanto a História testemunham algo que lhes concede primordial sentido: o Nascimento, a Vida, o Sofrimento, a Morte, a Ressurreição e a Ascenção de Jesus de Nazaré. Esses fatos possuem vastas evidências históricas, como atestam a filosofia de William Lane Craig acerca da Ressurreição de Cristo e a Profecia do Servo Sofredor, uma profecia de complexas implicações. Jesus de Nazaré é mais do que um personagem bíblico: é uma pessoa histórica, a própria base e estrutura da Civilização Cristã Ocidental. A História é sacra porque o Jesus Histórico viveu nela (Encarnação). Jesus é o sentido da História, a qual, desse modo, passa a ter significado a partir de uma estrutura cristológica fundante, História Mística e de significado simbólico, mas também assentada em evidências sólidas, a saber, a existência palpável e concreta do Jesus Histórico. 

A Cristandade constitui uma cultura complexa de tradição mística que não pode ser colocada à parte da Escritura. Sempre haverá dificuldades bíblicas, do mesmo modo que sempre existirão dificuldades em relação à História do Cristianismo; porém, existe uma estrutura firme e sólida que institui a certeza em relação à experiência mística: a Profecia do Servo Sofredor, uma profecia de complexas implicações. A História é sofrimento, mas também é, acima de tudo, deleite, quando o místico, para a Mística se volta: passa a ser, então, sofrimento transfigurado, superado pela profundidade de um relacionamento – espiritualidade relacional –  que concede, à Mística, pleno deleite e sentido.

A clivagem luterana, desse modo, é aquela que esvazia todo o significado da experiência mística histórica, rompendo com a tradição e canonizando o humano, destituindo-o da experiência mais profunda da santidade que outrora possuía raízes na própria civilização. No Neomedievalismo, torna-se, a experiência hagiográfica, a neodulia, a saber, a solidão dos pouquíssimos místicos que concedem, ainda, sentido à Igreja.  Mais do que o relato da Criação, é a experiência de estar, de algum modo, relacionado concretamente ao Jesus Histórico que estabelece sentido, sobre tudo, à comunidade cristã.

A perspectiva copernicana introduz, sem dúvida, a perplexidade e a solidão cósmica, através da impactante e desnorteadora ruptura entre Criação e Cosmos. Essa aporia é um dos maiores desafios para a filosofia e a ciência cristã. É um fato que a Terra é apenas um dos bilhões de planetas que existem no espaço sideral, de ínfimas dimensões, muitos dos quais orbitam estrelas absurdamente maiores do que o Sol, destituindo, assim, o Homem do centro do Universo, de modo que nos insere, a ciência moderna, em uma perplexidade desconhecida dos antigos e medievais. Ao olhar e interpretar a infinitude do Cosmos, o homem o faz a partir de uma perplexidade maior do que a existência da matéria no Universo: a perplexidade e o milagre da consciência e da linguagem. É a consciência que interpreta o Universo, através da perplexidade da lógica e da linguagem, que exprimem os conteúdos da ciência através de uma lei e ordem que são previamente dados, a saber, a matemática. O fenômeno da consciência transcende a perplexidade do Cosmos e nos conduz a um maior e confortante abismo, o universo humano. A perspectiva de tal universo não é estabelecida através da astrofísica, mas através da História. Não é o Cosmos que interpreta o homem; o que se dá é o oposto, e só é possível interpretar o mundo a partir da História humana, a qual, sendo construída através do milagre da consciência, transcende a matéria e o espaço. Ora, toda a História conflui para a existência do Jesus Histórico, pois nos é apresentado a partir de uma profecia de complexas implicações. É a centralidade cristológica que supera o abismo e a ruptura entre Criação e Cosmos, devolvendo o homem ao seu centro e ao seu confortante mundo histórico. No hino ontológico introdutório do Evangelho de João, quando esse refere-se à Criação, existe, já, uma reinterpretação de Gênesis. A Criação e o Homem são reunidos a partir de uma estrutura fundante do mundo, o Jesus Transcendente que, sem o qual, carece de sentido toda a História humana. Tal sentido não seria tão firme se não nos fosse dado, com rigor epistemológico,  o cumprimento integral e surpreendente da inabalável e referida profecia.

Promove, o hiato darwinista, maior desnorteamento do que a posição copernicana. O fato de estarmos em um contexto de longo e impessoal desenvolvimento da espécie humana é superado pelo fato de que concede, o Jesus Histórico, valor e qualidade objetivos ao homem, tendo em vista que foi esperado de acordo com premissas históricas de antemão dadas, as quais se cumpriram no tempo. O Jesus homem possui, assim, um sentido central e estruturante para o desenvolver histórico; ao entrar na História humana, reúne logicamente não apenas Criação e Cosmos, mas também Criação e Homem, pois a premissa histórica concedida pela profecia de complexas implicações dada aponta para o fato de que a lógica pertence intrinsecamente à História, e esta, ao humano, o qual descobre, na premissa histórica, um elemento inexorável de necessidade. O universo humano desvela que o homo sapiens é mais do que uma entre tantas espécies, do mesmo modo que a Terra é mais do que um entre tantos astros celestes; o homem se constrói a partir da própria História, História das Civilizações que atinge o seu ápice no Advento do Jesus Histórico, o qual, de antemão esperado, introduz, ao universo simbólico humano, o sentido.

É certo que toda construção filosófica, e mesmo metafísica, se não se pautar pelo rigor do raciocínio lógico, corre o risco de poetizar palavras que parecem fazer sentido à linguagem, mas não possuem um fundamento sólido e objetivo; contudo, ao voltar-se, o pensamento metafísico e filosófico, para o rigor histórico, e para a sua necessidade, a linguagem se revela amparada em premissas de antemão dadas, que estabelecem, no acontecimento cristológico, um caminho firme e um método seguro para o Sistema e a Ciência.

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1. HARRISON, Peter, O Holocausto da alma, em https://www.baciadasalmas.com/o-holocausto-da-alma/. Acesso em 15.10.2020.