quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Da Escritura – a tradição mística, o universo humano, a questão cosmológica e o sentido da linguagem

A genialidade de três pensadores – Martinho Lutero, Nicolau Copérnico e Charles Darwin – legou, à cultura ocidental, três abalos simbólicos históricos e três aporias; a separação entre: tradição mística e Escritura, Criação e Cosmos, Criação e Homem. A filosofia cristã permaneceu por séculos sem que se pusesse termo a essas dificuldades, até que a grande revolução na filosofia do Cristianismo das últimas décadas, que tem como expoentes precípuos Richard Swinburne, Alvin Plantinga e William Lane Craig, encontrou a filosoficamente respeitável solução ao problema exposto: a filosofia natural é desenvolvida como algo tão importante quanto a Escritura – em William Lane Craig, a Ressurreição de Cristo e o argumento cosmológico kalam são postos à prova em relação às verdades da História e do Cosmos –, e fatos empíricos  como o Big Bang e a Evolução das Espécies são considerados como assuntos normais da investigação científica do Cristianismo, com soluções filosóficas que não colocam em dificuldade a fé da Cristandade, mas, antes, a enaltecem, concedendo rigor epistemológico à tradição metafísica da grande cultura. Contudo, essas três aporias requerem, ainda, impetuoso debruçar filosófico, por parte do filósofo cristão, no que diz respeito às suas vastas implicações.

Lutero separou a tradição mística da Escritura, e a fé da razão e das obras, canonizando o humanismo. Copérnico destituiu a Terra do centro da realidade cósmica, estabelecendo grande crise para o pensamento cristão. Aristóteles era a base da cosmologia medieval; foi gradual a absorção do impacto, por parte da cultura, e a recepção do copernicanismo, mas não de modo que deixe de acreditar, hoje, grande parte dos cristãos, em um Universo impessoal, mecanicista, com estrelas e astros mais antigos do que a Terra, com buracos negros, pulsares, quasares, matéria escura, uma infinidade de galáxias, nebulosas, e em um Cosmos sempre em expansão, a partir do Big Bang. Ao olhar para o Gênesis, o adepto do Cristianismo pode, por um momento, duvidar, por exemplo, de que muitas estrelas e o Sol sejam mais antigos do que a Terra, mas se mantém, ainda assim, convicto de que existem, no espaço sideral, outras galáxias e uma diversidade de estrelas e sistemas solares semelhantes ao nosso. Contudo, tudo se torna diferente quando se volta para Darwin; o evolucionismo ainda não foi plenamente assimilado pela nossa cultura. Primeiro motivo: o darwinismo parece contradizer mais claramente Gênesis e toda a Escritura do que o copernicanismo. Segundo motivo: o fato de o homem provir de outra espécie parece contradizer o privilégio e nobreza concedidos pelos textos bíblicos ao homem, ser racional dotado de alma, razão e livre-arbítrio. Terceiro motivo: o evolucionismo é associado, historicamente, ao ateísmo e ao acaso, e aparenta ser desvinculado de todo o sentido teleológico e de valor que a Escritura atribui, de forma especial e singular, à Criação e ao homem.

Por todas essas razões, parece, ao leitor do texto bíblico, muito menos dificultoso crer no Big Bang, em outras galáxias, buracos negros e pulsares, e que a Terra gira ao redor do Sol e é ínfima em relação ao Cosmos, do que acreditar no evolucionismo e que o homem e todos os primatas possuem um ancestral em comum. Contudo, ao crer no Big Bang e em um universo complexo e antigo e, ao mesmo tempo, não acreditar no darwinismo, mas literalmente no relato bíblico da Criação, surge, ao cristão, uma dificuldade: o Criador haveria, desse modo, criado, há bilhões de anos, um Cosmos complexo a partir do Big Bang e, ao mesmo tempo, criado o Universo em seis dias, uma Terra mais antiga do que o Sol e as estrelas, e feito o homem a partir do barro. Ora, ambas as explicações para o surgimento do mundo são irreconciliáveis. O Criador não pode ter criado o Cosmos a partir do Big Bang e, em seguida, formado a Terra mais antiga do que o Sol e as estrelas e o homem a partir do barro. A explicação darwinista, por mais que pareça estranha – ainda – à fé cristã, harmoniza-se mais com o fato de Deus ter criado o Universo a partir do Big Bang – William Lane Craig, inclusive, demonstra que a teoria cósmica da explosão inicial é uma forte evidência científica a favor da existência de Deus –, de modo que a Terra se formou a partir de gases, sendo inicialmente quente ao extremo, esfriando-se lentamente e dando origem, posteriormente, ao RNA, ao DNA, às moléculas, aos seres unicelulares, aos animais aquáticos e, enfim, às criaturas complexas terrestres. Ora, ao cristão, é perfeitamente possível descartar a evolução, mas nesse caso ele deverá explicar como o relato bíblico da Criação harmoniza-se com a existência de outras galáxias, um Cosmos complexo e de estrelas mais antigas do que a Terra. Teriam, as outras galáxias, surgido após a Terra? O Criacionismo da Terra Jovem – descartado por William Lane Craig, Alvin Plantinga e Richard Swinburne, os maiores filósofos cristãos atuais, tão importantes quanto Agostinho, Tomás de Aquino e Duns Scoto – deveria explicar essas perplexidades em uma teoria tão complexa quanto a do Big Bang e do evolucionismo. A teoria darwiniana é mais condizente com um Cosmos antigo e complexo. Contudo, não há contradição entre o pensador cristão estar alinhado com as mais recentes e complexas descobertas científicas e, ao mesmo tempo, crer em Deus. Desde que não tome o relato bíblico da Criação de forma literal, mas de forma simbólica. De acordo com William Lane Craig, mesmo Agostinho não interpretava os seis dias da Criação de forma literal. É claro que, ao alinhar a crença bíblica com o pensamento científico atual, o cristão terá que lidar com uma série de dificuldades, como a questão do pecado original, a existência da alma e do Adão histórico. Essas aporias têm sido levadas em consideração nas investigações de Craig, e devem ser enfrentadas diligentemente pela filosofia cristã.

Diferentemente do arianismo e do modalismo, o darwinismo não é uma heresia, do mesmo modo que não o é a teoria copernicana. Todavia, é um fato que a posição de Darwin, assim como a de Copérnico, trouxeram um grande abalo para a cosmovisão cristã. Contudo, há um abalo pouco investigado na História, que é a ruptura luterana entre tradição mística e Escritura, e a afirmação do reformador alemão do literalismo bíblico, de modo a descartar toda a rica interpretação alegórica da cultura patrística e medieval acerca da Bíblia. Em relação a esse assunto, há um belíssimo texto do historiador cristão Peter Harrison, da Universidade de Queensland, traduzido por Paulo Brabo (1). Os antigos não desprezavam a riqueza de possibilidades de interpretação do texto bíblico como um livro rico e de revelação mística e multiforme ao homem. Para a Cristandade pré-luterana, a Escritura possui grande importância, em igualdade com a rica tradição eclesial, os filósofos do Cristianismo, os grandes teólogos, os doutores, os credos, os documentos da Igreja, as hagiografias, as histórias dos santos, os místicos, os mosteiros, a cultura sagrada cristã. Deus se revela à cultura a partir de um todo, a Igreja, manifestação mística do Verbo que se encarnou. A partir de Lutero, a Escritura se desprende desse todo, e passa a ser a única autoridade realmente relevante para o cristão, de modo que qualquer dificuldade bíblica representa um sério abalo para a sua cosmovisão, mas tal não ocorre em relação à cultura, aos santos, à tradição. Lutero promove a separação entre tradição mística e Escritura, a qual deixa de possuir sentido eminentemente místico e simbólico, passando a se tornar um livro com um significado literal e único. Contudo, assim não é a Escritura. O livro do Apocalipse, por exemplo, é repleto de simbolismos – as cabeças e os chifres da besta, a Grande Meretriz, não são literais –, mas também há, na Escritura, profecias literais e relatos históricos. No caso do relato da Criação, o que há é um simbolismo; o Universo é complexo e antigo, e em relação a isso, encaixa-se perfeitamente a visão darwiniana de mundo, ainda que tal evolução não tenha sido fruto do acaso cego, mas tenha sido, com um projeto de finalidade, guiado por Deus.

Isso não faz sentido à luz do literalismo luterano! Porém, pode ser entendido se a cultura cristã é compreendida como um todo maior e abrangente do que somente a Escritura, a qual é constituída não apenas de profecias literais – algumas das quais, inclusive, já se cumpriram –, de relatos históricos fidedignos, mas também de significado simbólico. Os escritores bíblicos nem sempre recebem uma inspiração dos fatos tal qual realmente são e ocorreram. Tal constatação filosófica difere muito da demitologização bultmanniana; mesmo assim, é suficiente para nos inserir em certa perplexidade e solidão cósmica, de modo a requerer uma solução das três grandes aporias suscitadas, em nossa cultura, pela genialidade de Martinho Lutero, Nicolau Copérnico e Charles Darwin, três grandes humanistas que despontaram no alvorecer de nossa complexa e desafiadora modernidade.

Passarei, a seguir, à solução a essas três grandes aporias de nosso tempo.

A Escritura não pode ser posta à parte da tradição mística da grande cultura, mas é uma pequena parte dela. Desse modo, é um livro com profecias literais e relatos históricos, mas também com conteúdo simbólico. O que determina se determinado conteúdo bíblico é histórico ou simbólico é a própria História. A História, sendo compreendida como sagrada, passa a ter primazia sobre a própria Escritura; a História é sacra, e a Escritura é uma pequena parte dela. Tanto a Escritura quanto a História testemunham algo que lhes concede primordial sentido: o Nascimento, a Vida, o Sofrimento, a Morte, a Ressurreição e a Ascenção de Jesus de Nazaré. Esses fatos possuem vastas evidências históricas, como atestam a filosofia de William Lane Craig acerca da Ressurreição de Cristo e a Profecia do Servo Sofredor, uma profecia de complexas implicações. Jesus de Nazaré é mais do que um personagem bíblico: é uma pessoa histórica, a própria base e estrutura da Civilização Cristã Ocidental. A História é sacra porque o Jesus Histórico viveu nela (Encarnação). Jesus é o sentido da História, a qual, desse modo, passa a ter significado a partir de uma estrutura cristológica fundante, História Mística e de significado simbólico, mas também assentada em evidências sólidas, a saber, a existência palpável e concreta do Jesus Histórico. 

A Cristandade constitui uma cultura complexa de tradição mística que não pode ser colocada à parte da Escritura. Sempre haverá dificuldades bíblicas, do mesmo modo que sempre existirão dificuldades em relação à História do Cristianismo; porém, existe uma estrutura firme e sólida que institui a certeza em relação à experiência mística: a Profecia do Servo Sofredor, uma profecia de complexas implicações. A História é sofrimento, mas também é, acima de tudo, deleite, quando o místico, para a Mística se volta: passa a ser, então, sofrimento transfigurado, superado pela profundidade de um relacionamento – espiritualidade relacional –  que concede, à Mística, pleno deleite e sentido.

A clivagem luterana, desse modo, é aquela que esvazia todo o significado da experiência mística histórica, rompendo com a tradição e canonizando o humano, destituindo-o da experiência mais profunda da santidade que outrora possuía raízes na própria civilização. No Neomedievalismo, torna-se, a experiência hagiográfica, a neodulia, a saber, a solidão dos pouquíssimos místicos que concedem, ainda, sentido à Igreja.  Mais do que o relato da Criação, é a experiência de estar, de algum modo, relacionado concretamente ao Jesus Histórico que estabelece sentido, sobre tudo, à comunidade cristã.

A perspectiva copernicana introduz, sem dúvida, a perplexidade e a solidão cósmica, através da impactante e desnorteadora ruptura entre Criação e Cosmos. Essa aporia é um dos maiores desafios para a filosofia e a ciência cristã. É um fato que a Terra é apenas um dos bilhões de planetas que existem no espaço sideral, de ínfimas dimensões, muitos dos quais orbitam estrelas absurdamente maiores do que o Sol, destituindo, assim, o Homem do centro do Universo, de modo que nos insere, a ciência moderna, em uma perplexidade desconhecida dos antigos e medievais. Ao olhar e interpretar a infinitude do Cosmos, o homem o faz a partir de uma perplexidade maior do que a existência da matéria no Universo: a perplexidade e o milagre da consciência e da linguagem. É a consciência que interpreta o Universo, através da perplexidade da lógica e da linguagem, que exprimem os conteúdos da ciência através de uma lei e ordem que são previamente dados, a saber, a matemática. O fenômeno da consciência transcende a perplexidade do Cosmos e nos conduz a um maior e confortante abismo, o universo humano. A perspectiva de tal universo não é estabelecida através da astrofísica, mas através da História. Não é o Cosmos que interpreta o homem; o que se dá é o oposto, e só é possível interpretar o mundo a partir da História humana, a qual, sendo construída através do milagre da consciência, transcende a matéria e o espaço. Ora, toda a História conflui para a existência do Jesus Histórico, pois nos é apresentado a partir de uma profecia de complexas implicações. É a centralidade cristológica que supera o abismo e a ruptura entre Criação e Cosmos, devolvendo o homem ao seu centro e ao seu confortante mundo histórico. No hino ontológico introdutório do Evangelho de João, quando esse refere-se à Criação, existe, já, uma reinterpretação de Gênesis. A Criação e o Homem são reunidos a partir de uma estrutura fundante do mundo, o Jesus Transcendente que, sem o qual, carece de sentido toda a História humana. Tal sentido não seria tão firme se não nos fosse dado, com rigor epistemológico,  o cumprimento integral e surpreendente da inabalável e referida profecia.

Promove, o hiato darwinista, maior desnorteamento do que a posição copernicana. O fato de estarmos em um contexto de longo e impessoal desenvolvimento da espécie humana é superado pelo fato de que concede, o Jesus Histórico, valor e qualidade objetivos ao homem, tendo em vista que foi esperado de acordo com premissas históricas de antemão dadas, as quais se cumpriram no tempo. O Jesus homem possui, assim, um sentido central e estruturante para o desenvolver histórico; ao entrar na História humana, reúne logicamente não apenas Criação e Cosmos, mas também Criação e Homem, pois a premissa histórica concedida pela profecia de complexas implicações dada aponta para o fato de que a lógica pertence intrinsecamente à História, e esta, ao humano, o qual descobre, na premissa histórica, um elemento inexorável de necessidade. O universo humano desvela que o homo sapiens é mais do que uma entre tantas espécies, do mesmo modo que a Terra é mais do que um entre tantos astros celestes; o homem se constrói a partir da própria História, História das Civilizações que atinge o seu ápice no Advento do Jesus Histórico, o qual, de antemão esperado, introduz, ao universo simbólico humano, o sentido.

É certo que toda construção filosófica, e mesmo metafísica, se não se pautar pelo rigor do raciocínio lógico, corre o risco de poetizar palavras que parecem fazer sentido à linguagem, mas não possuem um fundamento sólido e objetivo; contudo, ao voltar-se, o pensamento metafísico e filosófico, para o rigor histórico, e para a sua necessidade, a linguagem se revela amparada em premissas de antemão dadas, que estabelecem, no acontecimento cristológico, um caminho firme e um método seguro para o Sistema e a Ciência.

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1. HARRISON, Peter, O Holocausto da alma, em https://www.baciadasalmas.com/o-holocausto-da-alma/. Acesso em 15.10.2020.


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