terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A natureza da Igreja


Introdução

Tenho conversado constantemente com diversas pessoas a respeito da realidade do Cristianismo e da Igreja. Nessas minhas conversas, tenho notado que existe muita confusão e muitos mal-entendidos em relação à natureza e os propósitos do Cristianismo no mundo.

Em um dos meus recentes diálogos, foi levantada a hipótese – por alguns defendida – de que os cristãos nunca seguiram o que Jesus pregou. Segundo essa hipótese, a pobreza, por exemplo, recomendada por Jesus ao jovem rico – “vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres” – jamais foi vivida por qualquer cristão, mas são seguidas pelos hinduístas e budistas, por exemplo.

Foi, inclusive, citada a frase de Nietzsche na qual ele afirma que Jesus foi, na realidade, o único cristão que existiu – “o único cristão morreu na cruz”.

Em relação ao Budismo e ao Hinduísmo, não é acertado afirmar que todos os seus seguidores são pessoas que vendem os seus bens e os distribuem aos pobres, ao contrário dos cristãos. O Hinduísmo e o Budismo estão entre as maiores religiões do mundo – cerca de 851 milhões e 375 milhões, respectivamente –, e seria pueril considerar que todos esses seguidores vendem seus bens e os distribuem aos pobres, enquanto, na realidade, nenhum cristão jamais distribuiu seus bens a seus semelhantes.

Na realidade, em relação às religiões orientais, o que existem são grandes clichês e estereótipos. Como escrevi em meu texto A necessidade de uma Filosofia Mística para os dias de hoje (Primeira Parte), muito fala-se em Buda, Allan Kardec, Paulo Coelho e Dalai Lama, mas não se conhece os escritos de místicos cristãos como Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux e João da Cruz. No caso das religiões orientais, elas são admiradas por alguns motivos específicos. Primeiramente, por causa da massiva propaganda da mídia, que é sutilmente hostil ao Cristianismo, e exalta as religiões orientais por causa do movimento da Nova Era. Em segundo lugar, porque é próprio dos seres humanos possuir admiração por aquilo que lhe é distante e desconhecido. Aquilo que nos é familiar soa trivial, e o que está a distância atrai pois, por estar distante de nossos olhos, não vemos suas disfuncionalidades e equívocos. Em terceiro lugar, porque a espiritualidade mística cristã mais profunda permanece, pela esmagadora maioria, desconhecida.

Em relação a Nietzsche – o mais teimoso dos niilistas – considero desastroso que ainda seja levado a sério. É interessante o comentário que Anthony Kenny, em seu livro de história da filosofia, faz a seu respeito: “Não seria filosófico considerar a insanidade final de Nietzsche como razão para desconsiderar a sua filosofia; mas, por outro lado, não é fácil sentir muita piedade por alguém que considerava a piedade a mais desprezível das emoções”1. E é importante, aqui, ressaltar que Anthony Kenny é um filósofo ex-cristão agnóstico. E Nietzsche – como a maioria dos críticos do Cristianismo – não conhecia nada de História da Igreja

Obviamente, Nietzsche está equivocado. Mas há a também conhecida frase de Gandhi: “Eu gosto de Cristo... mas não de seus cristãos”. Será que, realmente, os cristãos não têm seguido o que Jesus ensinou, ao longo da História? É o que veremos, historicamente, ao longo desse texto.

Antes de abordarmos o importante papel social dos cristãos ao longo da História da Humanidade, e a importância fundamental da Igreja, iremos tratar de um conceito eclesiológico importante para entender a real natureza dos cristãos e da Igreja de Cristo.


Entendendo a natureza da Igreja

É salutar destacar que a relação entre Jesus e seus discípulos é muito diferente da relação comum que existe entre um mestre religioso moral qualquer e seus seguidores. Muitas pessoas tendem a achar que Jesus foi um mestre moral importante e isolado na História, que não foi muito compreendido e que falhou em deixar seguidores. Em relação a isso, é importante destacar o perspicaz comentário do insigne filósofo protestante C. S. Lewis: “Tento aqui impedir que alguém diga a grande tolice que sempre dizem sobre Jesus Cristo: ‘Estou pronto a aceitar Jesus como um grande mestre em moral, mas não aceito sua afirmação em ser Deus.’ Isto é exatamente a única coisa que não devemos dizer. Um homem que foi simplesmente homem, dizendo o tipo de coisa que Jesus disse, não seria um grande mestre em moral. Poderia ser um lunático, no mesmo nível de um que afirma ser um ovo pochê, ou mais, poderia ser o próprio Demônio dos Infernos. Você decide. Ou este homem foi, e é, o Filho de Deus, ou é então um louco, ou coisa pior… Você pode achar que ele é tolo, pode cuspir nele ou matá-lo como um demônio; ou você pode cair a seus pés e chamá-lo Senhor e Deus. Mas não vamos vir com aquela bobagem de que ele foi um grande mestre aqui na terra. Ele não nos deixou esta opção em aberto. Ele não teve esta intenção.”2

A relação entre Jesus e os seus discípulos é essencialmente diferente da relação entre os demais mestres religiosos – Zoroastro, Lao-Tsé, Confúcio, Sidarta Gautama, Maomé, Allan Kardec – e os seus seguidores. O relacionamento místico entre Jesus e os cristãos é de origem sobrenatural e está relacionado ao mistério que existe na espiritualidade mais profunda daqueles que se relacionam intimamente com Cristo. Veremos como é expresso esse relacionamento nos ensinamentos do Cristianismo, a seguir.

Jesus identifica-se com a Igreja. Assim ele diz a seus discípulos:

"Aquele que lhes dá ouvidos, está me dando ouvidos; aquele que os rejeita, está me rejeitando; mas aquele que me rejeita, está rejeitando aquele que me enviou" (Lc 10.16).

Vemos, aqui, a indissociabilidade entre Jesus e a Igreja. Atacar a Igreja corresponde a atacar Cristo. Obviamente, devemos criticar aquilo que algumas instituições fazem erroneamente em nome da Igreja. Mas isso é diferente de atacar a Igreja em sua essência. Iremos clarear esse ponto mais adiante.

Jesus diz, ainda, que ele é a videira e que os seus discípulos são os ramos (Jo 15.1-5). Tal comparação entre mestre e discípulo inexiste em qualquer das outras religiões e seus fundadores.  A relação entre os cristãos e seu mestre é profunda, radical e misteriosa. Ela se dá em um nível espiritual, e não ético ou moral. Nessa mesma parábola, Jesus diz: “sem mim vocês não podem fazer coisa alguma” (Jo 15.5). Ou seja, o relacionamento entre Jesus e os cristãos não se dá apenas em nível conceitual e histórico, mas em nível dinâmico, vivo e atual.

É importante também destacar: Jesus deixou uma Igreja. Deixou-a como uma entidade viva e que cumpriria o seu propósito até o fim. Vemos isso em seu colóquio com Pedro: “E eu lhe digo que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não poderão vencê-la” (Mt 16.18).

De acordo com a doutrina do Cristianismo, Jesus não é um simples mestre moral – embora em certo nível o passa ser – mas é o próprio Deus, o Logos encarnado e parte indissociável da Trindade, e não falhou deixando uma Igreja improdutiva e inútil para a sociedade. Veremos ao longo desse texto que a Igreja tem cumprido o seu papel na sociedade, embora, por causa da exposição negativa da mídia, e também por causa dos falsos cristãos, isso às vezes não pareça tão evidente, através de um olhar pouco profundo.

É preciso conhecer a História da Igreja. Sigamos adiante.

Na Escritura, a Igreja é apresentada também como Corpo Místico de Cristo:

“Cristo é o cabeça da Igreja, que é o seu corpo, do qual ele é o Salvador” (Ef 5.23).

“Ora, vocês são o corpo de Cristo, e cada um de vocês, individualmente, é membro desse corpo” (I Co 12.27).

Vemos, mais uma vez, como na Parábola da Videira, a íntima e misteriosa relação entre Jesus e os seus cristãos.

A Igreja é descrita também, nas Escrituras, como um templo espiritual do qual os cristãos são pedras vivas, e Jesus é a coluna principal (I Pe 2.4-6).

A Igreja é apresentada ainda como Noiva de Cristo (Ap 19.7-8).

O misterioso relacionamento entre Jesus e a sua Igreja é tão significativo que o próprio casamento é considerado, por Paulo, uma alegoria da relação entre Jesus e a Igreja. (Ef 5.29-32). Observa-se, aqui, que não é a relação entre a Igreja e Jesus que é considerada uma alegoria do relacionamento entre o homem e a mulher, mas, ao contrário, é o próprio casamento entre o homem e a mulher que é considerado uma alegoria de algo mais profundo: o relacionamento entre Jesus e sua Noiva.

Vemos, então, que a relação entre os cristãos e o mestre, Jesus, não é qualquer coisa. Existe uma dinâmica viva, sobrenatural e misteriosa.

A Igreja é mencionada, por Paulo, como o mistério que esteve oculto e que foi revelado, na História, aos anjos que o desconheciam, antes de ela ser revelada (Ef 3.8-11).

Pela Escritura a Igreja é considerada, ainda, “coluna e fundamento da verdade” (I Tm 3.15). Isso porque a única forma pela qual Jesus pode ser conhecido, após a sua Ascensão, é através da Igreja. E o que são os cristãos?

A palavra “cristãos”, do grego, significa “pequenos cristos”. Ou seja, aqueles que se parecem com Jesus. A primeira vez que os seguidores de Jesus foram chamados de cristãos foi em Antioquia, na Síria, nos tempos dos apóstolos.

É possível uma pessoa seguir os ensinamentos tão nobres e radicais de Jesus? De acordo com a Escritura e de acordo com a História, sim. Por quê? Por causa da pessoa do Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade. Após o encontro individual com Jesus, a pessoa que o encontra torna-se um cristão e Jesus passa a habitar nele, através do Espírito. Essa habitação é literal. A esse respeito, assim diz a Escritura.

“Respondeu Jesus: ‘Se alguém me ama, guardará a minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos nele morada’ “ (Jo 14.23).

“E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos seus corações, o qual clama: ‘Aba, Pai’ “ (Gl 4.6)

“Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20).

Vemos, assim, que a relação entre o cristão e Jesus é misteriosa, radical e viva. A espiritualidade de Jesus é profunda e apaixonante. E isto porque ele não é um mestre esquecido na História, mas uma pessoa atuante na História, uma pessoa viva que guia a História e manifesta-se à mesma através da presença ousada e significativa dos verdadeiros cristãos.


Diferença entre Igreja Invisível e as instituições

Existe uma diferença importante entre Igreja Invisível, que é o conjunto de todos os verdadeiros cristãos através da História, e as instituições que falam e atuam em nome da Igreja, mas que, sendo entidades humanas, são distintas do Corpo Místico de Cristo. Compreender essa diferença é essencial para entender a atuação da Igreja ao longo da História.

Como vimos acima, o mistério da Igreja é algo espiritual, vivo, dinâmico e orgânico. Essa Igreja é incorruptível (conjunto dos verdadeiros cristãos). Porém, para que ela possa atuar, surgem as instituições. Vemos, assim, surgir uma outra igreja, visível, institucional, humana. Com o passar do tempo, podem surgir (como de fato surgiram), ao longo da História, homens ímpios, falsos cristãos, que se apoderam das instituições, angariam poderes para si e realizam a impiedade em nome da Igreja e em nome de Deus. Enquanto esses homens realizam a impiedade, o conjunto dos verdadeiros cristãos continua a existir e a praticar a justiça e a piedade no mundo. Coexistem, assim, o joio e trigo, conforme a parábola de Jesus (Mt 13.24-30). Com o passar do tempo, vemos que as atitudes dos homens que se apoderam das instituições e realizam a impiedade são lembradas, enquanto os atos piedosos dos eminentes cristãos, que são como verdadeiras luzes na História da Igreja, tendem a ser esquecidos. Torna-se, assim, clichê, ao falar da História da Igreja, citar tragédias como as Cruzadas e a Inquisição católica e a Teologia da Prosperidade protestante, num chavão reducionista que desconhece a realidade hagiográfica dos santos católicos, ortodoxos e protestantes, e ignora suas nobres contribuições culturais, sociais e espirituais para o mundo.

A Parábola do Trigo e do Joio foi um aviso de Jesus de que dentro do Cristianismo o bem e o mal coexistiriam, e o fato de que surgiriam falsos líderes que atuariam impiamente em nome da Igreja está de acordo com as palavras de Paulo: “Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho. E dentre vocês mesmo se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair discípulos” (At 20.29-30).

Portanto, para compreender a História da Igreja é preciso discernimento histórico e entendê-la à luz das palavras de Jesus e de Paulo. Reduzir toda a História da Igreja a tragédias semelhantes às citadas é desconhecer a eclesiologia em sua essência e ignorar as luzes que brilharam e brilham no mundo, e que não deverão ser esquecidas.


A relação entre o Cristianismo e a pobreza – era apostólica

Existe uma relação muito estreita entre Cristianismo e pobreza. São diversos os textos bíblicos que tratam desse assunto. Não iremos expor aqui todos esses textos de forma exaustiva, mas separaremos alguns.

É possível constatar que os primeiros cristãos eram, em sua maioria, pobres, como demonstra, por exemplo, Tiago 2.5. O desprezo pelas riquezas, o abandono absoluto em Deus e a partilha dos bens eram características da Igreja dos tempos dos apóstolos, e essa característica irá se manter em toda a História da Igreja. Vejamos a seguir algumas importantes passagens bíblicas.

Paulo escreve:

“De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos. Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram a si mesmas com muitos sofrimentos. (I Tm 6.6-10).

 Vemos aqui que mais do que condenar a riqueza, o que é condenado é o amor ao dinheiro. Esse é um ponto-chave para compreendermos a relação do Cristianismo com a pobreza. Quando Jesus faz o convite ao jovem rico: “vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres”, ele está chamando-o principalmente a repartir e a ter Jesus como o seu maior tesouro. Assim, a relação da Igreja com a pobreza se faz nesse nível: o de repartir os bens e de ter Jesus como o maior tesouro. Muitos serão chamados a uma pobreza material radical, mas essa exigência não se estenderá a todos, pois o foco principal do chamado à pobreza é a partilha e o desapego, e não apenas a pobreza material em si. Vemos que a Igreja do tempo dos apóstolos era desapegada de seus bens e que havia a partilha de maneira generosa e abundante:

“Todos os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum.
Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade”. (At 2.44-45)

“Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um.” (At 4.34-35)

Vemos, aqui, que a Igreja é um organismo independente e que possui leis próprias, livres das leis do Estado e do mercado. Há mais de um milênio e meio antes de Karl Marx, os cristãos da era apostólica tinham tudo em comum, distribuíam os seus bens e, ao mesmo tempo, existia a propriedade privada, que não era controlada por nenhum Estado. Vemos, assim, que as leis da Igreja transcendem o Capitalismo e o Socialismo, e que a generosidade, desapego e partilha são características comuns do Cristianismo, e assim se dá a sua relação com a pobreza.

Diz, também, Paulo:

“O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade.” (Ef 4.28)

Constatamos, assim, que no Cristianismo, o trabalho é desejável, não para acúmulo de riquezas, mas para a partilha. Isso é algo totalmente novo e desafiador à luz do sistema capitalista secular que vivemos.

Assim diz Tiago, irmão de Jesus:

“A religião que Deus, o nosso Pai aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”. (Tg 1.27)

Há muitos outros textos bíblicos que mostram a relação entre a Igreja e a pobreza na era apostólica, mas creio que esses são suficientes.


A relação entre o Cristianismo e a pobreza – era pós-apostólica

O Cristianismo irrompeu como uma religião de mártires, a começar do fundador. Primeiramente perseguidos pelas autoridades judaicas, os cristãos foram depois duramente perseguidos pelos imperadores romanos, pois essa nova comunidade que insurgia recusava-se a cultuar os deuses de Roma. Muitos cristãos sofreram terríveis formas de morte e tortura. Muitos eram queimados vivos, tendo seus corpos utilizados como tochas para iluminar a cidade, enquanto outros eram lançados às feras no coliseu, e serviam de espetáculo aos pagãos. Surgiam, assim, os mártires e confessores. Essa perseguição sangrenta duraria até o Édito de Milão, em 313, no qual o imperador Constantino finalmente concederia liberdade de culto aos seguidores de Cristo.

Em relação aos mártires cristãos, é importante aqui fazer um paralelo com a pobreza intrínseca ao Cristianismo, observando que ela constitui mais do que o simples despojamento dos bens. Refere-se, aqui, a um despojamento interior, no qual os cristãos abrem mão não apenas de seus bens materiais, mas de suas próprias vidas, por ter encontrado um sentido que transcende a toda a transitoriedade inerente a essa existência. Cumpre-se, aqui, a kenosis, o esvaziamento radical de Jesus conforme expressa em Filipenses 2.5-7.

A partir do ano 270, antes de Constantino, surgem os padres do deserto,  e começa-se a insurgir uma rica espiritualidade a partir de homens que se isolam do mundo para um relacionamento mais intenso e misterioso com o divino. Surge a figura de Antão do Deserto e a vida eremítica e depois, com Pacômio, surgem as comunidades cenobíticas, quando o isolamento do mundo passa a se formar em grupos e comunidades. No século VI surge a ordem beneditina, com Bento de Núrsia (480-547).

Vemos, assim, que mesmo com uma igreja fundida ao Estado, após Constantino, desenvolve-se uma rica espiritualidade nos retiros dos mosteiros, onde muitos monges cristãos retiram-se do mundo e desenvolvem um relacionamento mais profundo com Deus de maneira independente do mesmo Estado. Com o tempo, surgiriam importantes ordens religiosas, como a dos cartuxos, carmelitas, passionistas, franciscanos, dominicanos, jesuítas, cistercientes, etc.

Ao estudarmos a espiritualidade cristã, vemos que a pobreza, no seio do Cristianismo, está relacionada profundamente a um despojamento interior, à pobreza de espírito e ao abandono radical nas mãos do Deus da História. Quando encontramos Jesus, deixamos de pertencermos a nós mesmos (I Cor 6.19; Gl 2.20). Essa pobreza e desapego dos bens e da própria vida serão vividos ao longo da História de maneira radical por todos os verdadeiros cristãos.

Ao longo da Idade Média, surgem as ordens mendicantes, como a dos franciscanos e a dos dominicanos, fundadas, respectivamente, por Francisco de Assis (1182-1226) e Domingos de Gusmão (1170-1221).

A história de Francisco de Assis, assim como de todos os santos, é impressionante. Filho de um rico comerciante, abandonou todos os seus bens para se dedicar exclusivamente à evangelização e ao serviço aos pobres. Tanto a ordem franciscana como a dominicana eram mendicantes, isto é, seus seguidores abriam mão de seus bens e não levavam nada pelo caminho, e dependiam de esmolas. E é nesse contexto que surge o voto de pobreza, que é praticado inclusive em nossos dias por diversas ordens religiosas.

É comum, na história dos santos, o abandono total dos bens para dedicar-se exclusivamente à causa de Jesus, em total dependência dele – embora isto não seja tratado, por exemplo, nos livros didáticos de História. E isso está em conexão com Marcos 6.7-11.

Em tempos mais recentes, é surpreendente o exemplo de abnegação, despojamento radical e serviço aos pobres de Teresa de Calcutá (1910-1997). Uma pessoa que abandonou tudo para se dedicar aos mais pobres dos pobres, na Índia, com uma fundação – Missionárias da Caridade – que se espalharia por todo o mundo. Essa mulher incrível, que ganhou em 1979 o Prêmio Nobel da Paz, resume o seu apostolado nessa frase, de sua autoria: “O amor, para ser verdadeiro, tem que doer. Não basta doar o supérfluo a quem necessita. É preciso doar até que isso nos machuque”. Essa mulher, com certeza, entendeu os sentimentos de Jesus e também os profundos propósitos de sua Igreja.

No Brasil, não podemos deixar de citar também o exemplo de Irmã Dulce (1914-1992), que dedicou sua vida para exercer obras de amor e misericórdia, através de seus projetos sociais, que tiveram repercussão em todo o mundo. E temos também a história de Zilda Arns (1934-2010), cujas obras de amparo aos pobres, no Brasil, deixaram um memorial inesquecível.

Nas comunidades protestantes, também existe uma relação entre Igreja e a pobreza, e existe a tradição de que os nossos bens não nos pertencem, e que devemos distribuí-los. Através dos dízimos e ofertas, o objetivo é que cada cristão reparta o que tem com os demais cristãos, pois o destino das ofertas e dízimos, além do salário pastoral (que é bíblico) são também os projetos sociais e o socorro às pessoas menos favorecidas da comunidade. Esse é o destino dos dízimos e ofertas em todas as igrejas sérias. Assim, a comunhão dos bens que existia na Igreja no tempo dos apóstolos e que perdurou em toda a História da Igreja persiste e continua até hoje.

A comunidade protestante também possui inúmeros e preciosos projetos sociais que não são divulgados pela mídia, os quais incluem orfanatos, recuperação de viciados, alimentação e educação de crianças carentes, cursos diversos e gratuitos para pessoas de baixa renda, entre muitos outros. É grande também o zelo missionário das comunidades protestantes sérias, que seguem em missão até países pobres como as nações da Janela 10-40, aonde levam não somente a mensagem de Jesus, mas também roupas, alimentos e remédios. É comum, nas missões, irem médicos e outros profissionais cristãos para prestarem assistência às pessoas necessitadas, não somente no exterior, mas também nos rincões do Brasil.

Sendo assim, é profunda e significativa a relação entre Cristianismo e pobreza. As igrejas que pregam riqueza e prosperidade financeira estão na contramão da História da Igreja de Cristo. A História da Igreja é uma história de abandono radical da própria vida, de partilha,  de abnegação, de amor e de desapego.

Muito mais gostaríamos de falar sobre a Igreja, mas isso sobrepujaria o espaço desse artigo. Tratamos, brevemente, da natureza da Igreja e de sua relação com a pobreza e o despojamento, mas poderíamos falar muito mais em relação à sua contribuição cultural para a civilização ocidental. Deixaremos esse outro aspecto da Igreja para um outro artigo. Creio que o que escrevemos é suficiente para entender um pouco da natureza sobrenatural da Igreja e de seu evidente despojamento, algo que é evidente à luz de um conhecimento maior de História da Igreja, mas que passa ao largo da maioria graças à propaganda negativa por parte de estruturas institucionais, mediáticas e antirreligiosas.

Recomendamos que se estude a hagiografia dos santos – católicos, ortodoxos e protestantes. À luz de um olhar mais profundo, fica evidente que os verdadeiros cristãos propagaram e viveram de forma concreta os ensinamentos de seu mestre, e ainda o fazem, e que é o relacionamento de amor e mistério que existe entre os cristãos e Jesus que faz do Cristianismo a mais bela, profunda e emocionante de todas as religiões.

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1 KENNY, Anthony – História Concisa da Filosofia Ocidental
2 LEWIS, C. S. – Cristianismo Puro e Simples