quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Introdução à ciência de santidade

Estar vinculado a uma instituição religiosa, ostentar o nome de cristão, possuir um grande conhecimento teológico ou ser um ativista religioso é algo que confere sensação de segurança, mas nenhuma garantia de salvação. Ser uma pessoa sem vínculos institucionais religiosos, não ser um cristão declarado, não possuir nenhum conhecimento teológico, exercer uma religião diferente do Cristianismo ou ser até mesmo um cético não corresponde, necessariamente, à ausência de salvação. A era da pós-modernidade constitui-se como algo culturalmente sobremodo complexo, de maneira que ostentar ou não o nome de cristão tornou-se insuficiente para a definição soteriológica; é necessário redefinir, filosoficamente, o conceito de salvação.

A cultura pós-moderna é absurdamente distinta da cultura medieval. A filosofia cética inexistia no medievo. A civilização era teocêntrica e entendida como sagrada. O mundo era muito menos convidativo ao ceticismo, à ausência de aderência cristã; existe, entre ambas as culturas, um imenso abismo. O Cristianismo desmoralizou-se com o tempo, após a sucessão de todos aqueles grandes movimentos humanistas filosóficos históricos, de modo que hoje o sentido do que é ser cristão possui muito mais relação com o íntimo de cada ser que vive em nossa cultura do que com a fé que ele professa. Na civilização pós-moderna, o sentido de ser salvo não mais é dizer: “sou cristão”, tampouco o significado de estar perdido o declarar: “não sou cristão”; subsiste, antes, sobretudo, a maneira de relacionar-se com a humanidade. O significado precípuo da salvação é a não desistência em relação ao humano. O sentido maior de perder-se é o desistir do humano. Não a humanidade como conceito; trata-se do relacionar-se cotidiano e do modo de reagir diante das manifestações abrangentes de maldade, a saber, diárias. A atitude precípua de salvação consiste na capacidade de permanecer dócil à humanidade, mesmo em face da hostilidade generalizada; veja-se: não se trata do fato de que não se deve, às pessoas hostis, a necessária veemência, mas, sim, de que a atitude para com os homens em geral – muitos dos quais não são hostis – não passe, através da cauterização da consciência daquele que reage, a ser a da impiedade generalizada para com todos, inclusive, com os bons, de modo que, para aquele que tende a cauterizar-se, a hostilidade de alguns – ou, mesmo, de muitos – é apenas o pretexto esperado para o desenvolvimento da hostilidade generalizada, para a qual tendia, desde o início.

Desse modo, enquanto o místico é cristão por essência, aquele que, não sendo o místico, permanece dócil ao humano, torna-se cristão por semelhança. Destarte, o cristão mediano constitui-se um cristão no segundo sentido. Ele é, como o que não professa o cristianismo, mas o é por semelhança, aquele que não vive a santidade essencial e, sim, a normal mediania. O cristão mediano, embora professe uma teologia semelhante à do místico, no que tange à espiritualidade assemelha-se ao não professo, e possui com esse muito maior intimidade do que com aquele, ao qual jamais logra distinguir. Possui, também, afinidade com o que se caracteriza pela desistência em relação ao humano, mas ostenta camuflagem cristã. A pós-modernidade constitui-se, assim, o âmbito da ambiguidade absoluta, dentro da qual se tornou, pela ausência generalizada de discernimento, indistinguível, o cristão. Contudo, é época transitória; o neomedievalíssimo vindouro será a era em que será inevitável, pela reação dos místicos, o autêntico discernimento, mesmo que seja instituído através de avassaladores e pouquíssimos, isto é, finalmente, para essa era, os verdadeiros cristãos.

É perfeitamente possível ser um cristão mediano, viver uma vida de santidade mediana e ser salvo, do ponto de vista do Cristianismo. A salvação não é privilégio dos grandes santos, mas de todo aquele que, através do esforço – a salvação requer uma dose importante de esforço –, procura amar verdadeiramente a Deus e ao próximo; esses serão misericordiosamente lembrados por Deus. Os misericordiosos alcançarão misericórdia. Contudo, o santo é aquele que vai além dos atos misericordiosos, os quais, para ele, constituem apenas o ponto de partida para uma jornada de intimidade e união com o Crucificado. Ele deseja ir além: alcançar o cume da perfeição. Esse gracioso estado é possível de ser alcançado nessa vida, e sobre ele escreveram os santos e, sobretudo, os místicos – isto é, os maiores entre os santos. Para todo aquele que almeja vivamente atingir o estado de perfeição, é necessária a introdução à ciência de santidade.

Contudo, o esforço, isoladamente, é inútil para a salvação e para a introdução à ciência de santidade. Em relação à introdução é necessário que haja, antes, um grande Encontro, um marco inicial, e alcançar a percepção de que a História flui através da doce preciosidade da Galileia, percepção difícil de ser atingida em meio aos desencontros do ceticismo – anacrônico – e da atual espiritualidade imanentista, para que possa haver, a partir de então, a cooperação de um Outro; o Encontro aponta para a Misericórdia como sendo apenas o ponto de partida, a partir do qual a alma será introduzida no mistério do caminho em direção à união divina, através das noites de contemplação e do caminho estabelecido, teoricamente, por João da Cruz, o qual é instituído, na filosofia mística neojuaniana, como Sistema e Ciência.

A visão da Paixão, ao incidir sobre o cristão, revela, imediatamente, Misericórdia, e o imerge no arrependimento profundo. É, a partir de então, convidado a um relacionamento pessoal com o Crucificado, o qual progressivamente fluirá como um rio. Há um desejo profundo de santidade. Não há, ainda, entretanto, a santidade profunda. É preciso que descubra a senda mística, através do contato com os escritos dos místicos da Igreja. Mais do que isso: é desejável que encontre a obra de João da Cruz, e é necessário que seja introduzido na Noite Escura, ou passivamente, por meio do Espírito que, intimamente, a ela conduz, ou ativamente, por meio da própria iniciativa, através da privação dos deleites sensíveis, temporais e espirituais. Embora existam muitos escritos dos místicos, subsiste o fato de que toda a mística foi sistematizada por João da Cruz, em uma síntese, embora não institua, ainda, o Sistema e a Ciência, no sentido moderno – pois, desde Descartes, faz-se necessário que, em filosofia, prevaleça o rigor do método. Toda a hagiografia da História da Igreja, toda a sua cultura, a sua mística e a sua santidade devem ser estudados a partir de um centro único irradiador: a joia do Carmelo, isto é, o Místico. A partir do Místico, existe uma teoria que, na filosofia aqui proposta, virá a se tornar, metodicamente e de maneira fundacional, Sistema e Ciência, a mística Transcendente, o neojuanismo. A partir da Noite Escura e do descobrimento da senda mística, o cristão é introduzido na ciência de santidade e pode lograr, enfim, avanços antes inimaginados, trilhando o árduo e deleitoso caminho da hagiologia.

O deleitoso caminho de santidade é necessariamente progressivo e lento, visando a um fim. O fim é a união de amor, a união divina, também denominada, na tradição cristã, união mística, matrimônio espiritual ou casamento místico. Para chegar a tal ápice, precedem a noite escura do sentido, a noite escura do espírito e o desposório espiritual, através da ascensão nas experiências purgativa, iluminativa e unitiva da vida cristã substancial, espiritualidade que remonta a Orígenes, e tem como ponto culminante a era de ouro, a espiritualidade esponsal do século XVI de Teresa de Ávila e do Místico. A união mística é da alma, o místico, e do Amado, o Verbo, a qual é interpretada, pelos místicos, no relacionamento retratado no Cântico dos Cânticos, texto que possui, para os místicos, um sentido estrutural. Orígenes e diversos místicos escreveram comentários místicos sobre o texto bíblico que possui significação fundamental no Cântico Espiritual de João da Cruz, livro que é o centro da obra do carmelita, unindo os significados de Subida do Monte Carmelo e Noite Escura, que tratam da noite escura e antecedem o matrimônio espiritual e Chama Viva de Amor, que trata do deleite matrimonial pós-noite escura. Em tal estado, a santidade torna-se plena, através do fortalecimento da vontade, estado de plenitude de coragem, fortaleza e discernimento, os quais tanta falta fazem em um período no qual predominam o analfabetismo cristão, a vontade ausente e a reprovável, onipresente e inútil mediania.

Sobre todas as coisas das quais se deve cuidar, a principal, sobre a qual o místico deve concentrar amorosa atenção, para que avance com maior rapidez e profundidade sobre os estágios da ciência de santidade devem ser, sem dúvida alguma, os olhos. Através desse amor, atingirá  rapidamente níveis elevados e antes inimaginados em todo o trilhar da hagiologia. É necessário, também, certa dose de simplicidade e doçura em relação ao humano e, acima de tudo, um amor a Jesus que se eleve corajosamente acima de todas as criaturas. Que se dedique à oração contemplativa e silenciosa e ao colóquio diário com o Amado. Que estime a solidão e que aprofunde a vastidão interior. Que estude, estime e ame o conhecimento, o continuo pensar e debruçar teórico. A filosofia mística neojuaniana é predomínio da vontade, mas possui, de maneira fundante, sólidas raízes no entendimento. É necessário trilhar o caminho do sofrimento e da adoração silenciosa, através da misteriosa contemplação do Crucificado e da identificação com o seus sofrimentos. Somente assim, alcançar-se-á o deleite firme e inconfundível do sublime e tranquilo estado de perfeição.

A partir da noite escura torna-se, o cristão, um contemplativo, um místico. Contudo, não basta adentrar a noite escura. É necessário trilhar o caminho proposto pelo filósofo carmelita no Cântico Espiritual. É preciso passar da dolorosa noite escura do sentido à mais temível noite, a do espírito. É preciso adentrar o desposório espiritual (que antecede a união mística). É desejável, enfim, introduzir-se no tão esperado matrimônio espiritual, após atingir, finalmente, a coragem mística, aquela violência necessária contra si mesmo na progressão radical de santidade, onde, através do sofrimento e desnorteamento – onde não há guia! (nem mesmo o Mistico) –, finalmente se diz: “a vós, aves ligeiras (...) vos conjuro” –, quando cessa-se a luta e adentra-se, enfim, o horto ameno. É necessário seguir o trilhar do Cântico Espiritual e superar a temível noite escura do espírito.

O principiante contempla o amor, mas não consegue vivê-lo. O adiantado vive o amor, e sofre dolorosamente, oferecendo a face ao próximo. O perfeito não mais sofre o descaso das criaturas, pois se preparou longamente para, finalmente, discernir todas as coisas e enfrentar o aión. Esse longo e dificultoso caminho pode ser percorrido mais rapidamente se houver o específico cuidado, como acima citado, ao olhar amável. É necessário trilhar o caminho do Cântico Espiritual e atingir a segurança da vontade livre e a coragem mística, impiedosa contra si mesmo nos últimos estágios da purificação. É preciso compreender que tal purificação, necessária para se atingir a união mística, é o centro da noite escura, e não os sofrimentos que nela ocorrem, como se fossem um fim em si mesmos. Quando adentra-se o repouso espiritual, preparada estará a alma para o verdadeiro discernimento e as verdadeiras e grandes batalhas. O aión e as linhas que tecem as danças constantes das marionetes temem a união mística e o discernimento. É necessário aprofundar-se, árdua e corajosamente, no caminho proposto pelo Místico. O tempo de viver a mediania já passou.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Da Escritura – a tradição mística, o universo humano, a questão cosmológica e o sentido da linguagem

A genialidade de três pensadores – Martinho Lutero, Nicolau Copérnico e Charles Darwin – legou, à cultura ocidental, três abalos simbólicos históricos e três aporias; a separação entre: tradição mística e Escritura, Criação e Cosmos, Criação e Homem. A filosofia cristã permaneceu por séculos sem que se pusesse termo a essas dificuldades, até que a grande revolução na filosofia do Cristianismo das últimas décadas, que tem como expoentes precípuos Richard Swinburne, Alvin Plantinga e William Lane Craig, encontrou a filosoficamente respeitável solução ao problema exposto: a filosofia natural é desenvolvida como algo tão importante quanto a Escritura – em William Lane Craig, a Ressurreição de Cristo e o argumento cosmológico kalam são postos à prova em relação às verdades da História e do Cosmos –, e fatos empíricos  como o Big Bang e a Evolução das Espécies são considerados como assuntos normais da investigação científica do Cristianismo, com soluções filosóficas que não colocam em dificuldade a fé da Cristandade, mas, antes, a enaltecem, concedendo rigor epistemológico à tradição metafísica da grande cultura. Contudo, essas três aporias requerem, ainda, impetuoso debruçar filosófico, por parte do filósofo cristão, no que diz respeito às suas vastas implicações.

Lutero separou a tradição mística da Escritura, e a fé da razão e das obras, canonizando o humanismo. Copérnico destituiu a Terra do centro da realidade cósmica, estabelecendo grande crise para o pensamento cristão. Aristóteles era a base da cosmologia medieval; foi gradual a absorção do impacto, por parte da cultura, e a recepção do copernicanismo, mas não de modo que deixe de acreditar, hoje, grande parte dos cristãos, em um Universo impessoal, mecanicista, com estrelas e astros mais antigos do que a Terra, com buracos negros, pulsares, quasares, matéria escura, uma infinidade de galáxias, nebulosas, e em um Cosmos sempre em expansão, a partir do Big Bang. Ao olhar para o Gênesis, o adepto do Cristianismo pode, por um momento, duvidar, por exemplo, de que muitas estrelas e o Sol sejam mais antigos do que a Terra, mas se mantém, ainda assim, convicto de que existem, no espaço sideral, outras galáxias e uma diversidade de estrelas e sistemas solares semelhantes ao nosso. Contudo, tudo se torna diferente quando se volta para Darwin; o evolucionismo ainda não foi plenamente assimilado pela nossa cultura. Primeiro motivo: o darwinismo parece contradizer mais claramente Gênesis e toda a Escritura do que o copernicanismo. Segundo motivo: o fato de o homem provir de outra espécie parece contradizer o privilégio e nobreza concedidos pelos textos bíblicos ao homem, ser racional dotado de alma, razão e livre-arbítrio. Terceiro motivo: o evolucionismo é associado, historicamente, ao ateísmo e ao acaso, e aparenta ser desvinculado de todo o sentido teleológico e de valor que a Escritura atribui, de forma especial e singular, à Criação e ao homem.

Por todas essas razões, parece, ao leitor do texto bíblico, muito menos dificultoso crer no Big Bang, em outras galáxias, buracos negros e pulsares, e que a Terra gira ao redor do Sol e é ínfima em relação ao Cosmos, do que acreditar no evolucionismo e que o homem e todos os primatas possuem um ancestral em comum. Contudo, ao crer no Big Bang e em um universo complexo e antigo e, ao mesmo tempo, não acreditar no darwinismo, mas literalmente no relato bíblico da Criação, surge, ao cristão, uma dificuldade: o Criador haveria, desse modo, criado, há bilhões de anos, um Cosmos complexo a partir do Big Bang e, ao mesmo tempo, criado o Universo em seis dias, uma Terra mais antiga do que o Sol e as estrelas, e feito o homem a partir do barro. Ora, ambas as explicações para o surgimento do mundo são irreconciliáveis. O Criador não pode ter criado o Cosmos a partir do Big Bang e, em seguida, formado a Terra mais antiga do que o Sol e as estrelas e o homem a partir do barro. A explicação darwinista, por mais que pareça estranha – ainda – à fé cristã, harmoniza-se mais com o fato de Deus ter criado o Universo a partir do Big Bang – William Lane Craig, inclusive, demonstra que a teoria cósmica da explosão inicial é uma forte evidência científica a favor da existência de Deus –, de modo que a Terra se formou a partir de gases, sendo inicialmente quente ao extremo, esfriando-se lentamente e dando origem, posteriormente, ao RNA, ao DNA, às moléculas, aos seres unicelulares, aos animais aquáticos e, enfim, às criaturas complexas terrestres. Ora, ao cristão, é perfeitamente possível descartar a evolução, mas nesse caso ele deverá explicar como o relato bíblico da Criação harmoniza-se com a existência de outras galáxias, um Cosmos complexo e de estrelas mais antigas do que a Terra. Teriam, as outras galáxias, surgido após a Terra? O Criacionismo da Terra Jovem – descartado por William Lane Craig, Alvin Plantinga e Richard Swinburne, os maiores filósofos cristãos atuais, tão importantes quanto Agostinho, Tomás de Aquino e Duns Scoto – deveria explicar essas perplexidades em uma teoria tão complexa quanto a do Big Bang e do evolucionismo. A teoria darwiniana é mais condizente com um Cosmos antigo e complexo. Contudo, não há contradição entre o pensador cristão estar alinhado com as mais recentes e complexas descobertas científicas e, ao mesmo tempo, crer em Deus. Desde que não tome o relato bíblico da Criação de forma literal, mas de forma simbólica. De acordo com William Lane Craig, mesmo Agostinho não interpretava os seis dias da Criação de forma literal. É claro que, ao alinhar a crença bíblica com o pensamento científico atual, o cristão terá que lidar com uma série de dificuldades, como a questão do pecado original, a existência da alma e do Adão histórico. Essas aporias têm sido levadas em consideração nas investigações de Craig, e devem ser enfrentadas diligentemente pela filosofia cristã.

Diferentemente do arianismo e do modalismo, o darwinismo não é uma heresia, do mesmo modo que não o é a teoria copernicana. Todavia, é um fato que a posição de Darwin, assim como a de Copérnico, trouxeram um grande abalo para a cosmovisão cristã. Contudo, há um abalo pouco investigado na História, que é a ruptura luterana entre tradição mística e Escritura, e a afirmação do reformador alemão do literalismo bíblico, de modo a descartar toda a rica interpretação alegórica da cultura patrística e medieval acerca da Bíblia. Em relação a esse assunto, há um belíssimo texto do historiador cristão Peter Harrison, da Universidade de Queensland, traduzido por Paulo Brabo (1). Os antigos não desprezavam a riqueza de possibilidades de interpretação do texto bíblico como um livro rico e de revelação mística e multiforme ao homem. Para a Cristandade pré-luterana, a Escritura possui grande importância, em igualdade com a rica tradição eclesial, os filósofos do Cristianismo, os grandes teólogos, os doutores, os credos, os documentos da Igreja, as hagiografias, as histórias dos santos, os místicos, os mosteiros, a cultura sagrada cristã. Deus se revela à cultura a partir de um todo, a Igreja, manifestação mística do Verbo que se encarnou. A partir de Lutero, a Escritura se desprende desse todo, e passa a ser a única autoridade realmente relevante para o cristão, de modo que qualquer dificuldade bíblica representa um sério abalo para a sua cosmovisão, mas tal não ocorre em relação à cultura, aos santos, à tradição. Lutero promove a separação entre tradição mística e Escritura, a qual deixa de possuir sentido eminentemente místico e simbólico, passando a se tornar um livro com um significado literal e único. Contudo, assim não é a Escritura. O livro do Apocalipse, por exemplo, é repleto de simbolismos – as cabeças e os chifres da besta, a Grande Meretriz, não são literais –, mas também há, na Escritura, profecias literais e relatos históricos. No caso do relato da Criação, o que há é um simbolismo; o Universo é complexo e antigo, e em relação a isso, encaixa-se perfeitamente a visão darwiniana de mundo, ainda que tal evolução não tenha sido fruto do acaso cego, mas tenha sido, com um projeto de finalidade, guiado por Deus.

Isso não faz sentido à luz do literalismo luterano! Porém, pode ser entendido se a cultura cristã é compreendida como um todo maior e abrangente do que somente a Escritura, a qual é constituída não apenas de profecias literais – algumas das quais, inclusive, já se cumpriram –, de relatos históricos fidedignos, mas também de significado simbólico. Os escritores bíblicos nem sempre recebem uma inspiração dos fatos tal qual realmente são e ocorreram. Tal constatação filosófica difere muito da demitologização bultmanniana; mesmo assim, é suficiente para nos inserir em certa perplexidade e solidão cósmica, de modo a requerer uma solução das três grandes aporias suscitadas, em nossa cultura, pela genialidade de Martinho Lutero, Nicolau Copérnico e Charles Darwin, três grandes humanistas que despontaram no alvorecer de nossa complexa e desafiadora modernidade.

Passarei, a seguir, à solução a essas três grandes aporias de nosso tempo.

A Escritura não pode ser posta à parte da tradição mística da grande cultura, mas é uma pequena parte dela. Desse modo, é um livro com profecias literais e relatos históricos, mas também com conteúdo simbólico. O que determina se determinado conteúdo bíblico é histórico ou simbólico é a própria História. A História, sendo compreendida como sagrada, passa a ter primazia sobre a própria Escritura; a História é sacra, e a Escritura é uma pequena parte dela. Tanto a Escritura quanto a História testemunham algo que lhes concede primordial sentido: o Nascimento, a Vida, o Sofrimento, a Morte, a Ressurreição e a Ascenção de Jesus de Nazaré. Esses fatos possuem vastas evidências históricas, como atestam a filosofia de William Lane Craig acerca da Ressurreição de Cristo e a Profecia do Servo Sofredor, uma profecia de complexas implicações. Jesus de Nazaré é mais do que um personagem bíblico: é uma pessoa histórica, a própria base e estrutura da Civilização Cristã Ocidental. A História é sacra porque o Jesus Histórico viveu nela (Encarnação). Jesus é o sentido da História, a qual, desse modo, passa a ter significado a partir de uma estrutura cristológica fundante, História Mística e de significado simbólico, mas também assentada em evidências sólidas, a saber, a existência palpável e concreta do Jesus Histórico. 

A Cristandade constitui uma cultura complexa de tradição mística que não pode ser colocada à parte da Escritura. Sempre haverá dificuldades bíblicas, do mesmo modo que sempre existirão dificuldades em relação à História do Cristianismo; porém, existe uma estrutura firme e sólida que institui a certeza em relação à experiência mística: a Profecia do Servo Sofredor, uma profecia de complexas implicações. A História é sofrimento, mas também é, acima de tudo, deleite, quando o místico, para a Mística se volta: passa a ser, então, sofrimento transfigurado, superado pela profundidade de um relacionamento – espiritualidade relacional –  que concede, à Mística, pleno deleite e sentido.

A clivagem luterana, desse modo, é aquela que esvazia todo o significado da experiência mística histórica, rompendo com a tradição e canonizando o humano, destituindo-o da experiência mais profunda da santidade que outrora possuía raízes na própria civilização. No Neomedievalismo, torna-se, a experiência hagiográfica, a neodulia, a saber, a solidão dos pouquíssimos místicos que concedem, ainda, sentido à Igreja.  Mais do que o relato da Criação, é a experiência de estar, de algum modo, relacionado concretamente ao Jesus Histórico que estabelece sentido, sobre tudo, à comunidade cristã.

A perspectiva copernicana introduz, sem dúvida, a perplexidade e a solidão cósmica, através da impactante e desnorteadora ruptura entre Criação e Cosmos. Essa aporia é um dos maiores desafios para a filosofia e a ciência cristã. É um fato que a Terra é apenas um dos bilhões de planetas que existem no espaço sideral, de ínfimas dimensões, muitos dos quais orbitam estrelas absurdamente maiores do que o Sol, destituindo, assim, o Homem do centro do Universo, de modo que nos insere, a ciência moderna, em uma perplexidade desconhecida dos antigos e medievais. Ao olhar e interpretar a infinitude do Cosmos, o homem o faz a partir de uma perplexidade maior do que a existência da matéria no Universo: a perplexidade e o milagre da consciência e da linguagem. É a consciência que interpreta o Universo, através da perplexidade da lógica e da linguagem, que exprimem os conteúdos da ciência através de uma lei e ordem que são previamente dados, a saber, a matemática. O fenômeno da consciência transcende a perplexidade do Cosmos e nos conduz a um maior e confortante abismo, o universo humano. A perspectiva de tal universo não é estabelecida através da astrofísica, mas através da História. Não é o Cosmos que interpreta o homem; o que se dá é o oposto, e só é possível interpretar o mundo a partir da História humana, a qual, sendo construída através do milagre da consciência, transcende a matéria e o espaço. Ora, toda a História conflui para a existência do Jesus Histórico, pois nos é apresentado a partir de uma profecia de complexas implicações. É a centralidade cristológica que supera o abismo e a ruptura entre Criação e Cosmos, devolvendo o homem ao seu centro e ao seu confortante mundo histórico. No hino ontológico introdutório do Evangelho de João, quando esse refere-se à Criação, existe, já, uma reinterpretação de Gênesis. A Criação e o Homem são reunidos a partir de uma estrutura fundante do mundo, o Jesus Transcendente que, sem o qual, carece de sentido toda a História humana. Tal sentido não seria tão firme se não nos fosse dado, com rigor epistemológico,  o cumprimento integral e surpreendente da inabalável e referida profecia.

Promove, o hiato darwinista, maior desnorteamento do que a posição copernicana. O fato de estarmos em um contexto de longo e impessoal desenvolvimento da espécie humana é superado pelo fato de que concede, o Jesus Histórico, valor e qualidade objetivos ao homem, tendo em vista que foi esperado de acordo com premissas históricas de antemão dadas, as quais se cumpriram no tempo. O Jesus homem possui, assim, um sentido central e estruturante para o desenvolver histórico; ao entrar na História humana, reúne logicamente não apenas Criação e Cosmos, mas também Criação e Homem, pois a premissa histórica concedida pela profecia de complexas implicações dada aponta para o fato de que a lógica pertence intrinsecamente à História, e esta, ao humano, o qual descobre, na premissa histórica, um elemento inexorável de necessidade. O universo humano desvela que o homo sapiens é mais do que uma entre tantas espécies, do mesmo modo que a Terra é mais do que um entre tantos astros celestes; o homem se constrói a partir da própria História, História das Civilizações que atinge o seu ápice no Advento do Jesus Histórico, o qual, de antemão esperado, introduz, ao universo simbólico humano, o sentido.

É certo que toda construção filosófica, e mesmo metafísica, se não se pautar pelo rigor do raciocínio lógico, corre o risco de poetizar palavras que parecem fazer sentido à linguagem, mas não possuem um fundamento sólido e objetivo; contudo, ao voltar-se, o pensamento metafísico e filosófico, para o rigor histórico, e para a sua necessidade, a linguagem se revela amparada em premissas de antemão dadas, que estabelecem, no acontecimento cristológico, um caminho firme e um método seguro para o Sistema e a Ciência.

___________________________________

1. HARRISON, Peter, O Holocausto da alma, em https://www.baciadasalmas.com/o-holocausto-da-alma/. Acesso em 15.10.2020.


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Uma nova era: Compreendendo o sentido da Igreja

A Igreja – aquela que a nós se apresenta como tal – se perdeu e se desintegrou no curso da História. Não entendeu o sentido da unidade cristã e sinergia. Não compreendeu o amor ágape e o sentido da adoração. Não assimilou o significado da recente renovação litúrgica e do âmbito do comportamento, que deveria ser a maior revolução espiritual de grande sentido para a comunidade cristã, enaltecendo o sentido da adoração – a saber, o sentido da sinergia. Revolução que transformou os relacionamentos apenas no âmbito do sentimento, não avançando além, para o âmbito da vontade. O sentido filosófico contemporâneo da Igreja assim pode ser afirmado: uma das maiores realizações da filosofia para o Cristianismo será, exatamente, a capacidade de enxergar a recente revolução litúrgica, artística e relacional eclesial como algo verdadeiramente distante e antigo.

O fraternismo legou à pós-modernidade um novo sentido cultural, presente nas relações e na esfera da religião: uma nova era. Tal sentido fez com que o nome de cristão hoje só possa ter sentido através do profundo discernimento. Se, no Romantismo, a reação ao árido Iluminismo era a afirmação do individualismo e do sentimento, hoje a cultura neoromântica, em reação à desmoralização da ortodoxia, institui o egocentrismo e o predomínio das sensações. A santidade tornou-se um elemento exótico, inusitado e novo, mais do que o próprio culto à natureza e a reafirmação do deus-homem, através da exploração das energias e do olhar da entediante religião de superfície em relação ao Todo e ao Cosmos. A profundidade, está muito além do Tibete e da Índia, está na audácia mística de João da Cruz: estabelecer ousadamente a mística esponsal como o único alvo da vontade possível, levando a espiritualidade cristocêntrica a profundidades antes  inimaginadas, superando até mesmo Orígenes, Bernardo de Claraval, Teresa de Ávila, e as posteriores Teresa de Lisieux e Teresa de Calcutá. Se, para a mística de Calcutá, o maior assombro é a Noite Escura (1), a filosofia complexa e profunda de João da Cruz vai muito além, estabelecendo a noite de contemplação como apenas um estágio necessário para o desposório espiritual e a união mística divina, transcendente, não imanentista: o radical e apaixonado amor àquele que é a própria estrutura fundante do mundo, a doce preciosidade da Galileia. A mística cristã é um sonoro não ao imanentismo, a Hermes Trismegisto, à Cabala, ao Gnosticismo, a Pitágoras, a Platão, ao Neoplatonismo, a Amônio Sacas, a Plotino, a Proclo, a Jâmblico, a Dionísio Areopagita, à espiritualidade de um Mestre Eckhart, a Marsílio Ficino, a Pico della Mirandola, a Nicolau de Cusa, a Descartes, a Spinoza, a Leibniz, a Kant, a Fichte, a Schelling, a Hegel, ao Romantismo, a Helena Blavatsky, a Alice Bailey, a Eliphas Levi, a Aleister Crowley, a Rudolf Steiner, a Henri Bergson, a Alfred North Whitehead, a Mário Ferreira dos Santos, aos ambíguos G. K. Chesterton, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis. O estudioso da filosofia e mística cristã deverá, antes, garimpar as preciosidades de Orígenes, Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, João Duns Scoto, Boaventura, Bernardo de Claraval, Catarina de Siena, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux, Isabel da Trindade, Faustina Kowalska, Charles Spurgeon, David Livingstone, John Wesley, Charles Finney, Jonathan Edwards, Teresa de Calcutá, Martin Luther King, Irmã Dulce, Zilda Arns, Richard Swinburne, Alvin Plantinga e William Lane Craig. Cito, aqui, também espíritos práticos, mas deverão ser estimados, sobretudo, os teóricos e contemplativos (2). E, especialmente, devido ao seu caráter estrutural, sistemático e hagiograficamente radical, o suavíssimo João da Cruz.

Poderá, o leitor cético, questionar, desconfiado: como podem espíritos tão brilhantes como Plotino, Leibniz, Descartes, Kant e Hegel, clássicos do pensamento filosófico, ser descartados  pelo estudioso da filosofia mística cristã? A esses, dou minha resposta: o que é colocado em questão não é o brilhantismo do pensamento desses autores, mas a espécie de espiritualidade que eles seguiam, a qual pode parecer, ao leitor, interessante, mas se o mesmo for pesquisar mais a fundo, verá que não era cristã. O pensamento cristão difere do hermetismo e da teurgia, no sentido em que ele não atribui imanência ou emanação à divindade, mas a postula como uma soberana, infinita, pessoal e, especialmente, relacional Transcendência. O ponto mais importante para a filosofia mística contemporânea é nada menos do que uma profunda e responsável distinção entre Transcendência e Imanência. Na pós-modernidade, e para a posterior cultura neomedievalista, na qual o ateísmo sai de cena – deixando, porém, uma marca em nosso mundo, a saber, certa indefinição acerca da ideia de Deus –, a distinção essencial não mais será entre  ateísmo  e teísmo, mas entre Imanência e Transcendência.

O pensamento cristão também difere do hermetismo no sentido em que ele não é dúbio, ambíguo, obscuro ou fechado em si mesmo, mas se constitui como uma filosofia que é própria da grande cultura, permanecendo cristalina e aberta para o mundo.

Deverá, Aristóteles, ser preferido a Platão, devido ao rigor sistemático e ao caráter enxuto e monumental da filosofia aristotélica, e ao influente hermetismo da metafísica platônica. Os principais filósofos da modernidade, ademais, deverão ser profundamente estudados, e não seguidos.

Contudo, no período transitório do relativismo da pós-modernidade, prevalece a superficialidade e uma espiritualidade sem contornos, indefinida, espiritualidade líquida, na qual a profundidade – isto é, João da Cruz – ainda não foi plenamente instituída. E se, como já afirmei, o Neomedievalismo constituirá a era do discernimento, no qual o Cristianismo Mediano será superado – embora não para a maioria –, podemos dizer que ele será também uma era de coragem para os verdadeiros cristãos. Contudo, devido a essas ruínas, é preciso refundar, filosoficamente, o sentido de Igreja.

A caracterização da antropodulia, ou culto ao grupo, é o estabelecimento de uma falsa inteligência, eternamente distraída, a qual, vendo, não vê, ouvindo, não escuta, falando, não diz, tocando, não sente. O totem social eregido permanece, assim, um símbolo intocável que não mais possui condições de ser considerado a Igreja no sentido mais nobre instituído pelo período pré-renascentista; trata-se do fato de que não mais flui, em seu centro, o sentido místico que antes possuía, no qual deveria ter progredido, ao invés de regredido. A recente e impressionante revolução litúrgica não floresceu e permaneceu um sentido estéril de aparência de espiritualidade, jamais a realizando, por causa do secularismo e humanismo que são  inerentes ao protestantismo, possuindo profundas raízes na alquimia e no renascentismo, jamais realizando a sinergia mística, isto é, jamais avançando para além do pragmatismo. Institui uma falsa inteligência, isto é, uma teologia humanista e aparentemente intelectualista, mas vazia, sem o sentido místico-eclesial que se esperaria de um grupo verdadeiramente místico; é incapaz, assim, de enxergar a própria contradição que a originou – pois o princípio do protestantismo é a alquimia pragmática dos renascentistas – e não pode superar-se, para além disso, apesar dos Grandes Despertamentos e das recentes notáveis revoluções litúrgicas. Além disso, permanece também, o Catolicismo, como uma comunidade que parou no tempo, isto é, no medievalismo, mas de forma a atuar também humanista e protestanticamente, perdendo o seu original sentido místico-hagiográfico histórico; ora, se a Igreja perdeu o seu sentido místico – não estuda João da Cruz –, permanece incapaz de enxergar todas aquelas sutis artimanhas do hermetismo que se disseminou por toda a cultura antropocêntrica dos recentes tempos, de modo que a que hoje temos sustenta o sentimento de uma nova religião, a saber, o imanentismo.

Como a sinergia não pode ser instituída – não apenas por causa da ambiguidade institucional, mas também porque, no âmbito das relações mais singelas, as pessoas livremente decidiram e escolheram jamais viver, de forma absolutamente radical, o amor ágape –, o caminho da Igreja será, necessariamente, a solidão mística de pouquíssimos  que, geograficamente distantes, realizarão verdadeiramente a coragem, a fortaleza, o discernimento e a vontade, discernindo intenções, enfrentando o aión e realizando a escolha distantes da ambiguidade instituída, jorrando sentido à própria cultura, opondo-se ao imanentismo e à coesão aparente de superfície. A senda que se opõe ao naufrágio do Cristianismo Mediano e institucional é o caminho de João da Cruz e a solidão dos místicos que, distantes de uma aparência de verdade que não subsiste, realizam a vocação filosófica-mística, conhecendo a cultura, estudando princípios e realizando a filosofia mística neojuaniana. O caminho para a verdadeira vida mística é o sistema proposto por João da Cruz, que é um caminho de Transcendência, o qual se opõe ao imanentismo instaurado O caminho filosófico de João da Cruz é o do discernimento puro.

O sentido da Igreja deixa de ser frequentar uma instituição, e passa a ser a mística profunda. Um caminho de solitude necessária, pois é certo que o caminho institucional passará a ser, nas próximas décadas, algo não plenamente definido e muito parecido com uma comunidade cristã. Passarão, os místicos, ao largo da sonora espiritualidade líquida; refugiar-se-ão em seu silêncio, isto é, a fortaleza do discernimento. É necessário estudar profundamente aquele que é  a pérola do Carmelo e a História da  Filosofia da cultura ocidental; a teologia da modernidade não oferece um caminho vasto e cristalino para a intrépida atitude hagiográfica, não estabelece a transparência necessária para o desprendimento do sentido  humanista pseudocrístão, não institui o desejável caminho da mística relacional Transcendente. É necessário discernir a verdadeira espiritualidade como um sentido não romântico imanentista, mas como uma fruição pessoal amorosa entre a amada, o místico, e o Amante, o Verbo, e como o sentido da intrépida força da amável joia do Carmelo.

___________________________

1. A noite escura de Teresa de Calcutá é relatada detalhadamente em KOLODIEJCHUK, B., Madre Teresa – venha, seja a minha luz (Thomas Nelson Brasil, Rio de Janeiro, 2008).

2. A filosofia é, essencialmente, contemplação e teoria, e é nesse sentido que deve, primeiramente, ser posta, a Mística.