quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Introdução à ciência de santidade

Estar vinculado a uma instituição religiosa, ostentar o nome de cristão, possuir um grande conhecimento teológico ou ser um ativista religioso é algo que confere sensação de segurança, mas nenhuma garantia de salvação. Ser uma pessoa sem vínculos institucionais religiosos, não ser um cristão declarado, não possuir nenhum conhecimento teológico, exercer uma religião diferente do Cristianismo ou ser até mesmo um cético não corresponde, necessariamente, à ausência de salvação. A era da pós-modernidade constitui-se como algo culturalmente sobremodo complexo, de maneira que ostentar ou não o nome de cristão tornou-se insuficiente para a definição soteriológica; é necessário redefinir, filosoficamente, o conceito de salvação.

A cultura pós-moderna é absurdamente distinta da cultura medieval. A filosofia cética inexistia no medievo. A civilização era teocêntrica e entendida como sagrada. O mundo era muito menos convidativo ao ceticismo, à ausência de aderência cristã; existe, entre ambas as culturas, um imenso abismo. O Cristianismo desmoralizou-se com o tempo, após a sucessão de todos aqueles grandes movimentos humanistas filosóficos históricos, de modo que hoje o sentido do que é ser cristão possui muito mais relação com o íntimo de cada ser que vive em nossa cultura do que com a fé que ele professa. Na civilização pós-moderna, o sentido de ser salvo não mais é dizer: “sou cristão”, tampouco o significado de estar perdido o declarar: “não sou cristão”; subsiste, antes, sobretudo, a maneira de relacionar-se com a humanidade. O significado precípuo da salvação é a não desistência em relação ao humano. O sentido maior de perder-se é o desistir do humano. Não a humanidade como conceito; trata-se do relacionar-se cotidiano e do modo de reagir diante das manifestações abrangentes de maldade, a saber, diárias. A atitude precípua de salvação consiste na capacidade de permanecer dócil à humanidade, mesmo em face da hostilidade generalizada; veja-se: não se trata do fato de que não se deve, às pessoas hostis, a necessária veemência, mas, sim, de que a atitude para com os homens em geral – muitos dos quais não são hostis – não passe, através da cauterização da consciência daquele que reage, a ser a da impiedade generalizada para com todos, inclusive, com os bons, de modo que, para aquele que tende a cauterizar-se, a hostilidade de alguns – ou, mesmo, de muitos – é apenas o pretexto esperado para o desenvolvimento da hostilidade generalizada, para a qual tendia, desde o início.

Desse modo, enquanto o místico é cristão por essência, aquele que, não sendo o místico, permanece dócil ao humano, torna-se cristão por semelhança. Destarte, o cristão mediano constitui-se um cristão no segundo sentido. Ele é, como o que não professa o cristianismo, mas o é por semelhança, aquele que não vive a santidade essencial e, sim, a normal mediania. O cristão mediano, embora professe uma teologia semelhante à do místico, no que tange à espiritualidade assemelha-se ao não professo, e possui com esse muito maior intimidade do que com aquele, ao qual jamais logra distinguir. Possui, também, afinidade com o que se caracteriza pela desistência em relação ao humano, mas ostenta camuflagem cristã. A pós-modernidade constitui-se, assim, o âmbito da ambiguidade absoluta, dentro da qual se tornou, pela ausência generalizada de discernimento, indistinguível, o cristão. Contudo, é época transitória; o neomedievalíssimo vindouro será a era em que será inevitável, pela reação dos místicos, o autêntico discernimento, mesmo que seja instituído através de avassaladores e pouquíssimos, isto é, finalmente, para essa era, os verdadeiros cristãos.

É perfeitamente possível ser um cristão mediano, viver uma vida de santidade mediana e ser salvo, do ponto de vista do Cristianismo. A salvação não é privilégio dos grandes santos, mas de todo aquele que, através do esforço – a salvação requer uma dose importante de esforço –, procura amar verdadeiramente a Deus e ao próximo; esses serão misericordiosamente lembrados por Deus. Os misericordiosos alcançarão misericórdia. Contudo, o santo é aquele que vai além dos atos misericordiosos, os quais, para ele, constituem apenas o ponto de partida para uma jornada de intimidade e união com o Crucificado. Ele deseja ir além: alcançar o cume da perfeição. Esse gracioso estado é possível de ser alcançado nessa vida, e sobre ele escreveram os santos e, sobretudo, os místicos – isto é, os maiores entre os santos. Para todo aquele que almeja vivamente atingir o estado de perfeição, é necessária a introdução à ciência de santidade.

Contudo, o esforço, isoladamente, é inútil para a salvação e para a introdução à ciência de santidade. Em relação à introdução é necessário que haja, antes, um grande Encontro, um marco inicial, e alcançar a percepção de que a História flui através da doce preciosidade da Galileia, percepção difícil de ser atingida em meio aos desencontros do ceticismo – anacrônico – e da atual espiritualidade imanentista, para que possa haver, a partir de então, a cooperação de um Outro; o Encontro aponta para a Misericórdia como sendo apenas o ponto de partida, a partir do qual a alma será introduzida no mistério do caminho em direção à união divina, através das noites de contemplação e do caminho estabelecido, teoricamente, por João da Cruz, o qual é instituído, na filosofia mística neojuaniana, como Sistema e Ciência.

A visão da Paixão, ao incidir sobre o cristão, revela, imediatamente, Misericórdia, e o imerge no arrependimento profundo. É, a partir de então, convidado a um relacionamento pessoal com o Crucificado, o qual progressivamente fluirá como um rio. Há um desejo profundo de santidade. Não há, ainda, entretanto, a santidade profunda. É preciso que descubra a senda mística, através do contato com os escritos dos místicos da Igreja. Mais do que isso: é desejável que encontre a obra de João da Cruz, e é necessário que seja introduzido na Noite Escura, ou passivamente, por meio do Espírito que, intimamente, a ela conduz, ou ativamente, por meio da própria iniciativa, através da privação dos deleites sensíveis, temporais e espirituais. Embora existam muitos escritos dos místicos, subsiste o fato de que toda a mística foi sistematizada por João da Cruz, em uma síntese, embora não institua, ainda, o Sistema e a Ciência, no sentido moderno – pois, desde Descartes, faz-se necessário que, em filosofia, prevaleça o rigor do método. Toda a hagiografia da História da Igreja, toda a sua cultura, a sua mística e a sua santidade devem ser estudados a partir de um centro único irradiador: a joia do Carmelo, isto é, o Místico. A partir do Místico, existe uma teoria que, na filosofia aqui proposta, virá a se tornar, metodicamente e de maneira fundacional, Sistema e Ciência, a mística Transcendente, o neojuanismo. A partir da Noite Escura e do descobrimento da senda mística, o cristão é introduzido na ciência de santidade e pode lograr, enfim, avanços antes inimaginados, trilhando o árduo e deleitoso caminho da hagiologia.

O deleitoso caminho de santidade é necessariamente progressivo e lento, visando a um fim. O fim é a união de amor, a união divina, também denominada, na tradição cristã, união mística, matrimônio espiritual ou casamento místico. Para chegar a tal ápice, precedem a noite escura do sentido, a noite escura do espírito e o desposório espiritual, através da ascensão nas experiências purgativa, iluminativa e unitiva da vida cristã substancial, espiritualidade que remonta a Orígenes, e tem como ponto culminante a era de ouro, a espiritualidade esponsal do século XVI de Teresa de Ávila e do Místico. A união mística é da alma, o místico, e do Amado, o Verbo, a qual é interpretada, pelos místicos, no relacionamento retratado no Cântico dos Cânticos, texto que possui, para os místicos, um sentido estrutural. Orígenes e diversos místicos escreveram comentários místicos sobre o texto bíblico que possui significação fundamental no Cântico Espiritual de João da Cruz, livro que é o centro da obra do carmelita, unindo os significados de Subida do Monte Carmelo e Noite Escura, que tratam da noite escura e antecedem o matrimônio espiritual e Chama Viva de Amor, que trata do deleite matrimonial pós-noite escura. Em tal estado, a santidade torna-se plena, através do fortalecimento da vontade, estado de plenitude de coragem, fortaleza e discernimento, os quais tanta falta fazem em um período no qual predominam o analfabetismo cristão, a vontade ausente e a reprovável, onipresente e inútil mediania.

Sobre todas as coisas das quais se deve cuidar, a principal, sobre a qual o místico deve concentrar amorosa atenção, para que avance com maior rapidez e profundidade sobre os estágios da ciência de santidade devem ser, sem dúvida alguma, os olhos. Através desse amor, atingirá  rapidamente níveis elevados e antes inimaginados em todo o trilhar da hagiologia. É necessário, também, certa dose de simplicidade e doçura em relação ao humano e, acima de tudo, um amor a Jesus que se eleve corajosamente acima de todas as criaturas. Que se dedique à oração contemplativa e silenciosa e ao colóquio diário com o Amado. Que estime a solidão e que aprofunde a vastidão interior. Que estude, estime e ame o conhecimento, o continuo pensar e debruçar teórico. A filosofia mística neojuaniana é predomínio da vontade, mas possui, de maneira fundante, sólidas raízes no entendimento. É necessário trilhar o caminho do sofrimento e da adoração silenciosa, através da misteriosa contemplação do Crucificado e da identificação com o seus sofrimentos. Somente assim, alcançar-se-á o deleite firme e inconfundível do sublime e tranquilo estado de perfeição.

A partir da noite escura torna-se, o cristão, um contemplativo, um místico. Contudo, não basta adentrar a noite escura. É necessário trilhar o caminho proposto pelo filósofo carmelita no Cântico Espiritual. É preciso passar da dolorosa noite escura do sentido à mais temível noite, a do espírito. É preciso adentrar o desposório espiritual (que antecede a união mística). É desejável, enfim, introduzir-se no tão esperado matrimônio espiritual, após atingir, finalmente, a coragem mística, aquela violência necessária contra si mesmo na progressão radical de santidade, onde, através do sofrimento e desnorteamento – onde não há guia! (nem mesmo o Mistico) –, finalmente se diz: “a vós, aves ligeiras (...) vos conjuro” –, quando cessa-se a luta e adentra-se, enfim, o horto ameno. É necessário seguir o trilhar do Cântico Espiritual e superar a temível noite escura do espírito.

O principiante contempla o amor, mas não consegue vivê-lo. O adiantado vive o amor, e sofre dolorosamente, oferecendo a face ao próximo. O perfeito não mais sofre o descaso das criaturas, pois se preparou longamente para, finalmente, discernir todas as coisas e enfrentar o aión. Esse longo e dificultoso caminho pode ser percorrido mais rapidamente se houver o específico cuidado, como acima citado, ao olhar amável. É necessário trilhar o caminho do Cântico Espiritual e atingir a segurança da vontade livre e a coragem mística, impiedosa contra si mesmo nos últimos estágios da purificação. É preciso compreender que tal purificação, necessária para se atingir a união mística, é o centro da noite escura, e não os sofrimentos que nela ocorrem, como se fossem um fim em si mesmos. Quando adentra-se o repouso espiritual, preparada estará a alma para o verdadeiro discernimento e as verdadeiras e grandes batalhas. O aión e as linhas que tecem as danças constantes das marionetes temem a união mística e o discernimento. É necessário aprofundar-se, árdua e corajosamente, no caminho proposto pelo Místico. O tempo de viver a mediania já passou.

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