sábado, 20 de julho de 2019

Neomedievalismo. Quinta Parte


QUINTA PARTE. ESTÉTICA, AMBIGUIDADE E IMANÊNCIA. PENSAMENTO, VOLIÇÃO E TRANSCENDÊNCIA. DISTINGUINDO ENTRE UNIDADE DE SUPERFÍCIE E COESÃO PELA VIA DO PENSAMENTO E DA VONTADE


Como já afirmei, subsistem, em nossa cultura, dois movimentos de unidade, sendo, o primeiro, o da espiritualidade fluida e, o segundo, aquele que é próprio da grande cultura. Nesse momento, esclarecerei melhor a natureza desses dois movimentos.

Em uma sociedade em que, tanto os pensamentos quanto as relações tornaram-se múltiplos e fragmentados, é natural que, em resposta a todo esse caótico pluralismo, passe-se a falar em unidade, retome-se o interesse pela metafísica e pela possibilidade do uno, muito mais interessante, do ponto de vista filosófico, do que a dispersão completa e a perda de sentido. Sendo assim, a busca por uma unidade ocorre tanto na esfera do pensamento quanto no âmbito das relações.

Contudo, embora essa unidade seja buscada, o que ocorre é que não se sabe muito bem o que seria esse uno, de forma que buscas profundamente distintas podem ser confundidas em sentimentos absurdamente semelhantes, sendo possíveis de serem distinguidos somente através da Filosofia Mística, ainda que tal distinção não seja o objetivo único dessa filosofia.

Destaco, aqui, um aspecto importante dos relacionamentos na esfera cultural hodierna, que não pode ser ignorado: tanto a espiritualidade do primeiro tipo quanto a espiritualidade mais profunda lidam com as sensações. No neomedievalismo, o sentido dos relacionamentos é justamente essa espiritualidade que sai dos mosteiros, e uma cultura de santidade que se despreende dos claustros para se fundamentar em um movimento que vai ao encontro da alteridade, e que busca no outro o sentido de uma unidade cujo fundamento existe na própria cultura, sendo o espírito cristão um fundamento ontológico que nela mesmo subsiste, transformando as relações. Esse é o sentido da busca por unidade de segundo tipo, a qual, porém, lida com as sensações, com o mundo cosmopolita, urbano, pós-monástico, contemporâneo, e deve fundamentar o sentido mais profundo da santidade não mais em uma privação do sensível, mas na sua transfiguração, de modo que nessa espiritualidade nova o sensível não mais é excluído, mas transfigurado em uma santidade que deve ser capaz de permanecer firme mesmo no âmbito dos sentidos. Para se viver a santidade, não mais se foge do mundo, mas aceita-se livremente o desafio de vivê-la plenamente estando dentro do próprio oikoumene, através do fundamento dos santos e dos místicos, cujo centro irradiador e hagiográfico são a vida e os escritos de místicos como João da Cruz e Orígenes, isto é, aqueles que são os maiores entre os santos e que, ainda assim, permanecem capazes de falar uma linguagem plenamente atual, compreensível e acessível ao nosso mundo. Estabelecendo, assim, que essa espiritualidade nova lida continuamente com o sensível, concentrarei agora meus esforços em distingui-la da espiritualidade de primeiro tipo, e em diferenciar as duas espécies distintas de busca por unidade e coesão que coexistirão, doravante, em nossa cultura.

Passarei a tratar, então, da busca por unidade do primeiro tipo. 

O primeiro sentimento de unidade e sentido de espiritualidade constitui, especificamente, aquilo que podemos denominar holismo metafísico, o qual opera por três princípios primordiais: o primeiro, a estética; o segundo, a ambiguidade;  o terceiro, a imanência. Deter-me-ei nesses três termos, mas, não ainda de maneira fundante, porém introdutória, pois o objetivo dessas exposições constituem o ensaio, e não ainda os fundamentos, embora sejam bastantes proveitosas para introduzir um novo pensamento, que será  estruturado, em breve, de maneira fundacional, e também metódica.

Sendo, a estética, o primeiro princípio da espiritualidade fluida, isto significa que, ao contrário da experiência mística propriamente neomedievalista, aquela faz do sentimento estético uma via estrutural e fundante, de modo que o sensível não mais é, apenas, um caminho que necessita ser percorrido, mas o próprio sentido existencial e ontológico,  fundamento extremamente frágil que constitui uma espiritualidade a um só tempo utilitarista, sofística e pragmatista, na qual o relacionamento com o próximo, o pensamento e o transcendente se dissolvem em um imanentismo no qual as relações com a alteridade não mais existem propriamente, mas o ego insiste em se apropriar do todo, ingenuamente, como se o pudesse, pois é fato não muito difícil de ser notado que, em toda cadeia de relações, as partes coexistem de forma particular, identitária e própria, sendo a multiplicidade do que se relaciona submetida ao princípio de causalidade que transcende e dá sentido ás relações – pois se a causa fosse inerente ao efeito, com ele coexistindo, não existiria causa nesse mundo, mas ela mesmo se aniquilaria, o que é absurdo –, de modo que toda experiência dita mística que possui o seu fundamento em uma experiência estética da existência está relacionada a um certo imanentismo cósmico e existencial, e possui fundamentos frágeis, tanto no âmbito existencial quanto no nível ontológico.

No âmbito existencial, o que é a experiência estética da existência? É o âmbito do hedonismo despótico e do entretenimento continuo, isto é, o culto incessante ao sensível, e também o domínio do sentimento sobre o pensamento, e da sensação sobre a vontade, o qual, mesmo quando se constitui como pensamento, jamais serve a si próprio, mas ao domínio dos sentidos, não podendo o pensamento fundar-se, por si mesmo, em terreno seguro. A espiritualidade fluida é aquela que, mesmo quando se apresenta como genuinamente cristã, constitui a esfera do ilusionismo e do protagonismo dissimulantes, e que, mesmo quando parece comunidade, e parece acolher, não efetua a verdadeira sinergia, mas o estereótipo de uma espiritualidade que se dissolve em arte de dissimulação premeditada e voluntária, cujo propósito é jamais ser, mas parecer, o que ocorre tanto no nível das lideranças quanto nos relacionamentos mais informais e singelos. Porém, mesmo quando não aparenta ser cristã, isto é, no âmbito do secularismo, é também arte de atrair para si, mas jamais doar-se inteiramente. A arte da experiência estética é o domínio do oculto e do sentimento que, em breve, constituirá uma espiritualidade líquida e unificada que se parecerá muito com uma coesão genuína. Constituirá apenas, contudo, uma unidade de superfície.

No nível ontológico, o que é a experiência estética de existência? Trata-se de uma perspectiva extremamente pragmatista e  sensualista acerca do cosmos, na qual o indivíduo não intenciona relacionar-se com os seres e as coisas, mas expandir-se para além dos limites de sua individualidade, confundindo expansão de consciência com relacionamento. Ora, nenhuma cultura conheceu o que são, propriamente, os relacionamentos, como a grande cultura ocidental cristã, cujo sentimento medievo é uma coesão que opera não apenas em valores de unidade cristã, mas em uma estrutura ontológica fundante do mundo, que o sustenta sem se confundir com ele – o que, em filosofia mística, entendo como o próprio Verbo que se encarnou, unindo-se ao criado, porém sem nele dissolver-se, de modo que nesse pensamento a estrutura é relacional, e não imanente –, sendo a coesão que é própria da grande cultura algo que  supera, em solidez, a frágil espiritualidade líquida neoromântica.

A espiritualidade de primeiro tipo, além de fundamentar-se na estética, constitui também o predomínio da ambiguidade, isto é, o jogo de dissimulação necessária e continua, onde nenhuma relação, quer com o divino, quer com o humano, pode se estabelecer em fundamentos seguros. Trata-se do âmbito das relações instituídas em uma dinâmica e jogo de luz e sombras, no qual a confiança no humano jamais pode se apoiar plenamente, mas se constroem laços que não realizam a autenticidade que é requerida em qualquer relacionamento. Constroem-se, assim, lideranças baseadas no autoritarismo e na ambiguidade relacional, onde a santidade jamais é desejada, e comunidades inteiras são arrastadas e conduzidas pelo jogo, pelo protagonismo. Na esfera das relações singelas, uma coesão é buscada, mas jamais atingida. Fora das comunidades, isto é, no âmbito da grande cultura, mesmo os relacionamentos seculares também, raramente, são construídos de acordo com aquele princípio de unidade que é inerente às raízes da espiritualidade milenar cristã, a saber, cristológica. Qual é a essência dos relacionamentos? Qual é o princípio da distinção de uma coesão nítida? Ademais, se até mesmo um satanista é capaz de escrever e discursar sobre a Crucificação e levar multidões a lágrimas, como estabelecer, quer o conhecimento, quer o relacionamento, em fundamentos seguros? Afirmamos que, seguramente, sobre os fundamentos dessa Filosofia Mística, e através do fato que aqui expomos: não há mais sentido em fundamentar uma espiritualidade através do refúgio em instituições. Deveríamos inaugurar uma maneira nova de nos relacionarmos com o instituído. A espiritualidade neomedievalista será aquela vivida no próprio mundo, no seio da grande cultura, indo além dos muros.

O terceiro princípio da espiritualidade fluida é, naturalmente, a imanência. No holismo metafísico jamais é, o conceito de divindade, estabelecido em conceitos filosoficamente claros, carecendo, assim, de rigor epistêmico e lógico. O fundamento de causalidade do próprio mundo, definido com rigor lógico na filosofia tomista, e também craiguiana, perde-se em conceitos vagos e contraditórios na espiritualidade neoagiana, a qual possui caráter menos contemplativo do que pragmático, não realizando, verdadeiramente, aquilo que entendemos como a essência mística, que é a expressão de um relacionamento, na mística milenar cristã mais profunda, e que difere da espiritualidade de tipo mais pragmatista, de tipo fraternista, que é, especificamente, o princípio de toda cisão da grande cultura, da desconstrução do sentimento profundo hagiográfico, não realizando a Eclesia, isto é, o conhecimento contemplativo subsistente no próprio mundo, mais profundo de Orígenes, Bernardo de Claraval, João da Cruz, Jonathan Edwards, William Wilberforce e Martin Luther King, uma sabedoria firme que é própria do ocidente (1) e que, fundamentando a sinergia, estabelecendo a misericórdia e vivenciando a mística esponsal constituirá, especificamente, uma teoria que não apenas definirá os princípios do neomedievalismo e dos relacionamentos, mas, além disso, estabelecerá fundamentos seguros que são próprios de um sistema abrangente e vasto de filosofia, que aqui exponho de maneira, ainda, introdutória.

O segundo sentimento de unidade, necessário, o qual deve ser estruturado filosoficamente, de forma a constituir uma teoria consistente de espiritualidade, é justamente aquele que já é próprio da grande cultura do ocidente, e que nele está presente como que de forma invisível, e também subterrânea, e constitui, acima de tudo, uma grande memória, viva e que é própria de um grande pensamento – pois é certo que os relacionamentos estão, de algum modo, vinculados aos pensamentos culturais, e há um que reside na tradição, não, porém, de forma apenas teórica, mas como algo vivo, uma estrutura fundante, uma pedra firme que não será, por muitos, rejeitada, presença atuante, espiritual e que transcende a natureza, pois é relação e identificação com o humano, e com o criado –, o qual opera através de três princípios fundamentais: o primeiro, o pensamento; o segundo, a volição; o terceiro, a transcendência. Sendo aquele que entendemos como o Logos,  o Verbo, a Palavra,  o próprio pensamento que organiza o mundo, é natural que opere também pelo pensamento; sendo, ademais, aquele que possui vontade, infinita, e propósitos infinitos em relação à criação, é natural que opere também pela volição; sendo, enfim, transcendente, é natural que organize o mundo através do princípio de causalidade, necessidade, universalidade e teleologia, sendo, portanto, não imanente. Pois é certo que, se as teses céticas modernas e contemporâneas não foram capazes de desconstruir a ideia de Deus em nossa cultura, mas apenas lhe conferiram certo pragmatismo kantiano, e que filósofos analíticos recentes como Alvin Plantinga e Richard Swinburne têm, nos últimos cinquenta anos, trazido à tona um pensamento novo acerca da ideia de Deus que responde aos maiores desafios céticos (2), e, sobretudo, William Lane Craig, o incomparavelmente maior de todos, vem destruindo o ateísmo, a questão central agora não mais é se a defesa da ideia de Deus é racional ou não, como nos séculos precedentes, mas o que significa, exatamente, algo como espiritualidade, e qual é a que fornece, filosoficamente, maior sentido.

Na espiritualidade propriamente  neomedievalista, o intelecto possui domínio sobre a emoção, e a sensação submete-se à vontade. Desse modo, como já afirmei anteriormente, nessa nova  espiritualidade não mais há o temor do sensível e a fuga do mundo, mas a transfiguração da sensação e a vivência de uma espiritualidade profunda, muito rica e relacional dentro do próprio oikoumene, onde a santidade se instaura de forma progressiva e serena, indo corajosamente além dos seus  próprios limites e mais fundo do que jamais antes estivera, até atingir aquele sublime estado de perfeição do qual falam os grandes místicos que conhecem a elevada linguagem de João da Cruz, do Carmelo, porém transfigurada agora em uma que é  plenamente compreensível e acessível ao nosso mundo, cosmopolita e múltiplo, no qual o claustro não mais é um refúgio institucional que se despreende do mundo, mas a própria interioridade, a abrigar aquele que é entendido na longa tradição mística milenar cristã como o Esposo. A espiritualidade neomedievalista, não temendo as sensações, mas submetendo-as à vontade, estabelece verdadeiros relacionamentos dentro da própria grande cultura e, diferentemente da espiritualidade neoromântica, não institui no sensível e no entretenimento uma pedra basilar para a constituição de relacionamentos superficiais e fugazes, mas estabelece, em uma profunda espiritualidade, aquele que será um movimento decisivo e firme em direção à alteridade.

Diferenciando-se da rasa experiência estética da existência, destacando-se pelo amor ao pensamento, realizando a volição, mais profunda, em relação ao humano, estabelecendo um relacionamento com a transcendência, e não uma expansão imanente da consciência, a espiritualidade  que é própria de Orígenes, Bernardo de Claraval, Teresa de Ávila e João da Cruz, na filosofia neomedievalista, opor-se-á à espiritualidade de tipo neoromântica e, diferentemente de uma busca por unidade de superfície, constituirá, profundamente, a coesão que opera pela via do pensamento e da vontade, fundamentando, na grande cultura, o verdadeiro sentido de unidade.


FIM DA QUINTA PARTE 
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(1) Embora Orígenes tenha sido um filósofo oriental, sua inspiração constituirá aquilo que podemos denominar a essência mística cristã mais forte, esponsal e especulativa que se desenvolverá dentro do Ocidente, a qual atingirá o seu clímax em João da Cruz, de modo que o místico de Alexandria será nada menos que o grande divisor de águas da espiritualidade de nossa cultura.
(2) CRAIG, William Lane, God is not dead yet, em https://www.reasonablefaith.org/writings/popular-writings/existence-nature-of-god/god-is-not-dead-yet/. Acesso em 20.07.2019.