1. A necessidade da inquietação
e do engajamento acadêmico
Vivemos
em um mundo diferente do mundo antigo. A contemporaneidade, com todas as suas
complexidades, traz desafios novos. Refiro-me, especificamente, ao caráter cumulativo
da História. É inevitável que, com o passar dos tempos, ideologias e conceitos
se acumulem no caldo cultural da sociedade, trazendo necessidades cada vez mais
complexas ao pensamento. Esse é um desafio para o filósofo cristão. É também um
desafio para o cientista, para o pensador identificado com a cristandade.
Se eu fosse definir quais são as principais características da comunidade cristã
atual, uma delas seria o que poderíamos denominar distração crônica. Há uma certa indolência e um torpor característico
que permeia a comunidade cristã. Vivemos em uma época de complexos desafios,
mas aqueles que se identificam com o cristianismo parecem, de alguma forma, absortos
em suas próprias idiossincrasias, valorizando mais o entretenimento do que a cultura,
mais a busca do próprio bem-estar do que o incômodo e a reflexão. Diante dos
desafios que a comunidade cristã esperam, podemos perguntar: onde está o
incômodo?
Pensar,
refletir, é inquietar-se. É olhar com misericórdia para os problemas do mundo,
é sentir-se desafiado a responder às principais questões do pensamento que
desafiam a comunidade.
Diante
disso, é norteadora a frase do filósofo cristão contemporâneo William Lane
Craig: “Não é suficiente focar em entretenimento e pensamentos devocionais bobos
nos grupos de jovens e escolas bíblicas. Temos que treinar nossos filhos para a
guerra. Não podemos enviá-los para o ensino médio e para a universidade armados
de espadas de borracha e armaduras de plástico. O tempo de brincar já passou”
(1)
Se
você considera essa frase pouco espiritual, insensível ou arrogante, talvez
ainda não tenha percebido o que está em questão. Tudo isso tem a ver com um
pouco do que estamos escrevendo nesse artigo: a necessidade de o cristão
caminhar na aridez do universo do pensamento e da cultura. Um universo onde, na
maioria das vezes, não encontrará nada de Jesus e nada referente às consolações
que o cristão pode encontrar, por exemplo, em sua comunidade. Mas é um caminho
necessário.
Quando
Jesus, na oração sacerdotal, pede ao Pai: “Não rogo que os tires do mundo, mas
que os protejas do Maligno” (Jo 17.10), é inevitável aplicarmos isso ao caráter
engajador do academicismo cristão: não basta que existam líderes de louvor e
pastores; é necessário que haja também cristãos comprometidos com a defesa do
pensamento cristão na academia, e que não façam essa defesa em nenhum dos
extremos, a saber, o do fundamentalismo cômodo (que é a incapacidade crônica de
renovar a linguagem) ou do liberalismo cômodo (a incapacidade de manter um
pensamento que seja coerente com a História), mas na lucidez cêntrica de uma
ortodoxia engajada com a necessidade de renovação da linguagem (sem abandonar
os princípios) e da apreensão do sentimento da contemporaneidade.
Por
que a filosofia, ao que parece, está se tornando tão popular atualmente? Porque
as pessoas estão se dando conta de que a contemporaneidade pede por um sentido
e, desistindo de encontrar sentido na religião, passam a buscá-lo no
pensamento. Mas essa é uma necessidade também para a Igreja.
É
certo que há muitas pessoas, entre os cristãos, que se interessam pela cultura
e pelo pensamento, mas o fazem sem se preocupar com uma formação acadêmica e
com o engajamento em uma carreira mais sólida, focada na formação árida e no
aprofundamento das fontes. O meu incentivo e o meu convite é que essas pessoas
não se contentem com o autodidatismo, mas que enfrentem, com coragem, a
necessidade de aprofundar-se com seriedade nos fundamentos históricos do
pensamento, buscando uma maciça formação, quer seja em ciências naturais, quer
seja em ciências humanas. É necessário que surjam pensadores e cientistas
cristãos às centenas. Pois já existe muito sério engajamento na Teologia, tanto
bíblica quanto sistemática, mas há poucos cientistas, pensadores, filósofos,
historiadores, antropólogos, sociólogos, geógrafos, cientistas da religião,
psicólogos, pedagogos, jornalistas, literatos, psiquiatras, neurologistas, matemáticos, físicos,
cosmólogos, químicos, bioquímicos, biólogos, arqueólogos cristãos.
Ao
chegarmos nesse ponto, é inevitável a reflexão: o que é, exatamente, um
pensador e um cientista cristão? É simplesmente alguém graduado em uma área
específica do pensamento e que frequenta a igreja? Obviamente, trata-se de algo
muito distinto disso. Um pensador e um cientista cristão, no sentido estrito, é
um teólogo que somou à Teologia uma área específica da ciência e do pensamento
humano. Alguém que percebeu que a sua vocação não é produzir uma teologia que
seja apenas para a Igreja. Ele é também um evangelista na área acadêmica,
alguém que percebeu a importância da teologia também no campo da cultura, da
ciência e do pensamento secular. Alguém deve influenciar essa cultura, que é
secular, tornando-a mais conforme Jesus, conforme os ensinamentos da Igreja.
Ele não impõe os ensinamentos da Igreja, mas é alguém que convence pelas regras
do pensamento e da lógica. Ele também está imbuído de uma espiritualidade que é
desconhecida desse mundo. Desconhecida também do pensamento da nova era. E o
que são os ensinamentos da Igreja? A teologia da prosperidade, enriquecer às
custas das pessoas, a Inquisição, as Cruzadas, a ostentação, a imposição, o
moralismo, o legalismo, o fanatismo, o mundo do êxtase irrefletido e das
sensações? Nada disso tem a ver com a essência da Igreja (2). O ensinamento da
Igreja é a vida e os ensinamentos de Jesus de Nazaré.
Portanto,
são necessários certa dose de discernimento vocacional e de coragem para
adentrar a aridez da vida cristã acadêmica. É necessário também, como diremos
mais adiante, certa dose de inspiração e originalidade. Criatividade. É preciso
coragem para guerrear dentro da arena do pensamento, não se apequenando, sem
ser pusilânime, mas igualando-se com os grandes espíritos da História, enfrentando
os principais pensadores do mundo ocidental, aprendendo e dialogando com eles
mas, principalmente, opondo-se àquilo que é contrário à essência dos
ensinamentos de Jesus, a maior luz que já surgiu na História, inabalável, inigualável.
2. Ortodoxia, originalidade
e especialização
Assim
diz o filósofo cristão contemporâneo Alvin Plantinga: “Primeiro, filósofos e
intelectuais cristãos devem demonstrar mais autonomia – mais independência do
resto do mundo filosófico. Segundo, filósofos cristãos devem mostrar
integridade – integridade no sentido original da palavra, ser um inteiro.
Talvez ‘integralidade’ fosse a melhor palavra aqui. E necessário aos dois há um
terceiro: coragem cristã, ou ousadia, ou força, ou talvez auto-confiança
cristã” (3).
O
que quer dizer tudo isso? Significa, exatamente, a necessária coesão entre dois
elementos que podem, à primeira vista, parecer opostos, mas são indissociáveis:
ortodoxia e originalidade. Ora, de acordo com o senso comum, ser cristão é ser
necessariamente reacionário, algo que se opõe à originalidade. Quem pensa assim
não conhece a fundo as raízes do pensamento cristão. O cristianismo, desde as suas origens,
perseguido inicialmente pelos imperadores romanos, tem o que pode ser
considerado de mais original e subversivo. E mesmo na era medieval, quando
torna-se finalmente cultura, não perde sua força e originalidade. O elemento
essencialmente sacro, os conteúdos da arte sacra, que se estendem à
modernidade, a mística esponsal da era de ouro, a espiritualidade espanhola do
século XVI, os mosteiros como centros que irradiam espiritualidade e cultura,
tudo isso são conteúdos essencialmente originais da cultura cristã, que inundou
o ocidente e alcançou muitos corações que contemplam o Cristo que é exaltado
entre as nações. Ora, é necessário, aqui, que esses elementos sejam
considerados como o que há de mais original e que se opõem ao espírito do
secularismo, e esse reconhecimento e essa identidade são exatamente a
ortodoxia.
É
indispensável que o pensador e o cientista cristão, ciente dessa cultura do
qual a sociedade está impregnada – mesmo tentando a ela resistir –, mantenha-se
fiel às suas raízes de forma original e ortodoxa, pois a ortodoxia – diferente
do fundamentalismo – é a originalidade. É necessário, pois, que o pensador e o
cientista cristão percorra um caminho próprio, distante do secularismo, e que
caminhe na aridez, mas que nessa aridez lance raízes fundamentadas em uma
cultura que, por ser essencialmente bela, jamais deverá ser esquecida.
Referimo-nos
aqui, evidentemente, ao caráter místico e espiritual do cristianismo.
É
necessário que o teólogo cristão se questione em qual área aprofundará a sua
teologia, pois o olhar do pensador e do cientista cristão é, necessariamente,
um olhar teológico. O pensador e o cientista cristão necessita, antes de tudo,
ser teólogo. É preciso que ele aprofunde o discernimento vocacional e se
questione: em que área do pensamento aprofundarei a minha teologia? Pois é
certo que a teologia bíblica e a teologia sistemática não são as únicas formas de
se exercer a teologia. Não é um caminho obrigatório. Deve-se assim, o
vocacionado, questionar, se realmente a sua teologia será voltada apenas para
os que estão do lado de dentro da comunidade cristã, ou se não há, em sua
vocação, algum pendor para a atuação evangelística no sentido de contribuição
para a formação cultural cristã da sociedade. Ou seja, a teologia que ultrapasse o
biblicismo, que fale uma língua que o mundo entenda e diga respeito não somente
à Igreja, embora em sua base esteja sempre se direcionando à Igreja.
3. Vida acadêmica: da aridez
e das consolações
Existe
um caminho que é necessariamente o da solidão acadêmica e no qual se abraça a
aridez não por conforto, mas por vocação. Trata-se de um caminho distante do
mundo dos louvores, das mãos estendidas, em alegria, aos céus, e da doçura das
consolações encontradas na comunidade. Um mundo mais próximo do que o cristão
tem a dizer ao mundo na segunda-feira do que do que tem de receber da comunidade
no domingo festivo. O mundo do pensador e do cientista cristão é um mundo de
solidão e aridez necessários. Um mundo em que se caminha no deserto por amor a
uma causa. É, esse pensador e cientista cristão, necessariamente, um idealista.
Mas é também um realista. Ele tem em Deus a sua fonte de experiência mais
concreta. E por causa dessa concretude, ele consegue, distante das consolações
comunitárias, caminhar na aridez. Mas essa aridez e esse deserto serão também a
sua verdadeira fonte de consolação.
Trata-se,
aqui, da necessidade de ser capaz de extrair, do que é aparentemente árido e
infértil, a consolação necessária, pois é caminhando na aridez do pensamento
secular que encontrar-se-ão as bases para demolir tudo aquilo que inutilmente
tentou erigir o mundo: um monumento aparentemente gigantesco, mas de bases frágeis,
insuficientes para derrubar aquilo que a Igreja sabiamente construiu através
dos séculos. Só conseguirá demolir essas estruturas, que perceberá como
frágeis, se aventurar-se a conhecer profundamente o que o academicismo secular
construiu com o passar dos tempos, em oposição à sólida filosofia da Igreja e ao
pensamento teísta mais profundo.
A
Igreja possui uma filosofia sólida, mas há ainda muita dispersão e diversidade
de pensamentos. É preciso um conhecimento que atravesse todas essas filosofias
para que alcance um pensamento, uma síntese ainda não encontrada. É necessário
que o filósofo cristão caminhe na aridez, busque uma formação sólida e
respeitável, aprofunde-se, especialize-se, conheça em profundidade as raízes
que tecem as linhas das danças constantes das marionetes. Que conheça em
profundidade também tudo o que foi produzido de sólida filosofia cristã e teísta. Trata-se de um engajamento constante, de um afastar-se das consolações
dominicais e dos devocionais infantis.
Isso
não significa que abandonará a espiritualidade, tampouco a comunidade, a
Igreja. Não há sentido em fazer tudo isso deixando a Igreja; não é disso que estamos tratando aqui. Estamos tratando, antes, de uma solidão desconhecida, necessária e pouco compreendida, mas que não esteja demasiadamente distante da comunidade. É preciso estar alicerçado na comunidade, mas sem grandes projeções e apego. É necessário
que se dedique à vida devocional, mas que não seja alicerçada em uma
experiência infantil, mas em uma sólida leitura e caminhada de espiritualidade
fundada nos místicos da Igreja.
Uma
misteriosa solidão acompanha o vocacionado, tanto o místico quanto o filósofo.
É indispensável aprender a caminhar sozinho e é necessário extrair a consolação
dessa aridez. É preciso se adaptar a isso.
As
consolações que brotam do Espírito Santo não têm fim. Elas se mostram renováveis,
mesmo nos momentos mais desérticos, mesmo em meio à noite escura, a ditosa noite escura, conforme João da Cruz.
Depois
de trilhar um longo caminho, adquirirá a independência e a fortaleza necessária
para erigir um pensamento e uma ciência que tenham algo a dizer ao mundo. Esse
é o nosso conselho e o nosso encorajamento: cristãos, formem-se em filosofia, formem-se em ciências. Busquem a
especialização. Transformem o mundo.
Bibliografia
(1)
CRAIG, William Lane, Quem Precisa da
Apologética Cristã
http://despertaibereanos.blogspot.com/2008/10/quem-precisa-de-apologtica-crist.html.
Acesso em 02.09.2018.
(2)
CRUZ, Anderson Francisco da, A Natureza
da Igreja
http://andersonfranciscodacruz.blogspot.com/2018/02/a-natureza-da-igreja.html. Acesso em 08.09.2018.
(3)
PLANTINGA, Alvin, Conselho aos Filósofos
Cristãos
http://despertaibereanos.blogspot.com/2010/03/conselho-aos-filosofos-cristaos-alvin.html.
Acesso em 08.09.2018.