sábado, 8 de setembro de 2018

Vida acadêmica: da aridez e das consolações


1. A necessidade da inquietação e do engajamento acadêmico

Vivemos em um mundo diferente do mundo antigo. A contemporaneidade, com todas as suas complexidades, traz desafios novos. Refiro-me, especificamente, ao caráter cumulativo da História. É inevitável que, com o passar dos tempos, ideologias e conceitos se acumulem no caldo cultural da sociedade, trazendo necessidades cada vez mais complexas ao pensamento. Esse é um desafio para o filósofo cristão. É também um desafio para o cientista, para o pensador identificado com a cristandade.

Se eu fosse definir quais são as principais características da comunidade cristã atual, uma delas seria o que poderíamos denominar distração crônica. Há uma certa indolência e um torpor característico que permeia a comunidade cristã. Vivemos em uma época de complexos desafios, mas aqueles que se identificam com o cristianismo parecem, de alguma forma, absortos em suas próprias idiossincrasias, valorizando mais o entretenimento do que a cultura, mais a busca do próprio bem-estar do que o incômodo e a reflexão. Diante dos desafios que a comunidade cristã esperam, podemos perguntar: onde está o incômodo?

Pensar, refletir, é inquietar-se. É olhar com misericórdia para os problemas do mundo, é sentir-se desafiado a responder às principais questões do pensamento que desafiam a comunidade.

Diante disso, é norteadora a frase do filósofo cristão contemporâneo William Lane Craig: “Não é suficiente focar em entretenimento e pensamentos devocionais bobos nos grupos de jovens e escolas bíblicas. Temos que treinar nossos filhos para a guerra. Não podemos enviá-los para o ensino médio e para a universidade armados de espadas de borracha e armaduras de plástico. O tempo de brincar já passou” (1)

Se você considera essa frase pouco espiritual, insensível ou arrogante, talvez ainda não tenha percebido o que está em questão. Tudo isso tem a ver com um pouco do que estamos escrevendo nesse artigo: a necessidade de o cristão caminhar na aridez do universo do pensamento e da cultura. Um universo onde, na maioria das vezes, não encontrará nada de Jesus e nada referente às consolações que o cristão pode encontrar, por exemplo, em sua comunidade. Mas é um caminho necessário.

Quando Jesus, na oração sacerdotal, pede ao Pai: “Não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno” (Jo 17.10), é inevitável aplicarmos isso ao caráter engajador do academicismo cristão: não basta que existam líderes de louvor e pastores; é necessário que haja também cristãos comprometidos com a defesa do pensamento cristão na academia, e que não façam essa defesa em nenhum dos extremos, a saber, o do fundamentalismo cômodo (que é a incapacidade crônica de renovar a linguagem) ou do liberalismo cômodo (a incapacidade de manter um pensamento que seja coerente com a História), mas na lucidez cêntrica de uma ortodoxia engajada com a necessidade de renovação da linguagem (sem abandonar os princípios) e da apreensão do sentimento da contemporaneidade.

Por que a filosofia, ao que parece, está se tornando tão popular atualmente? Porque as pessoas estão se dando conta de que a contemporaneidade pede por um sentido e, desistindo de encontrar sentido na religião, passam a buscá-lo no pensamento. Mas essa é uma necessidade também para a Igreja.

É certo que há muitas pessoas, entre os cristãos, que se interessam pela cultura e pelo pensamento, mas o fazem sem se preocupar com uma formação acadêmica e com o engajamento em uma carreira mais sólida, focada na formação árida e no aprofundamento das fontes. O meu incentivo e o meu convite é que essas pessoas não se contentem com o autodidatismo, mas que enfrentem, com coragem, a necessidade de aprofundar-se com seriedade nos fundamentos históricos do pensamento, buscando uma maciça formação, quer seja em ciências naturais, quer seja em ciências humanas. É necessário que surjam pensadores e cientistas cristãos às centenas. Pois já existe muito sério engajamento na Teologia, tanto bíblica quanto sistemática, mas há poucos cientistas, pensadores, filósofos, historiadores, antropólogos, sociólogos, geógrafos, cientistas da religião, psicólogos, pedagogos, jornalistas, literatos, psiquiatras, neurologistas, matemáticos, físicos, cosmólogos, químicos, bioquímicos, biólogos, arqueólogos cristãos.

Ao chegarmos nesse ponto, é inevitável a reflexão: o que é, exatamente, um pensador e um cientista cristão? É simplesmente alguém graduado em uma área específica do pensamento e que frequenta a igreja? Obviamente, trata-se de algo muito distinto disso. Um pensador e um cientista cristão, no sentido estrito, é um teólogo que somou à Teologia uma área específica da ciência e do pensamento humano. Alguém que percebeu que a sua vocação não é produzir uma teologia que seja apenas para a Igreja. Ele é também um evangelista na área acadêmica, alguém que percebeu a importância da teologia também no campo da cultura, da ciência e do pensamento secular. Alguém deve influenciar essa cultura, que é secular, tornando-a mais conforme Jesus, conforme os ensinamentos da Igreja. Ele não impõe os ensinamentos da Igreja, mas é alguém que convence pelas regras do pensamento e da lógica. Ele também está imbuído de uma espiritualidade que é desconhecida desse mundo. Desconhecida também do pensamento da nova era. E o que são os ensinamentos da Igreja? A teologia da prosperidade, enriquecer às custas das pessoas, a Inquisição, as Cruzadas, a ostentação, a imposição, o moralismo, o legalismo, o fanatismo, o mundo do êxtase irrefletido e das sensações? Nada disso tem a ver com a essência da Igreja (2). O ensinamento da Igreja é a vida e os ensinamentos de Jesus de Nazaré.

Portanto, são necessários certa dose de discernimento vocacional e de coragem para adentrar a aridez da vida cristã acadêmica. É necessário também, como diremos mais adiante, certa dose de inspiração e originalidade. Criatividade. É preciso coragem para guerrear dentro da arena do pensamento, não se apequenando, sem ser pusilânime, mas igualando-se com os grandes espíritos da História, enfrentando os principais pensadores do mundo ocidental, aprendendo e dialogando com eles mas, principalmente, opondo-se àquilo que é contrário à essência dos ensinamentos de Jesus, a maior luz que já surgiu na História, inabalável, inigualável.


2. Ortodoxia, originalidade e especialização

Assim diz o filósofo cristão contemporâneo Alvin Plantinga: “Primeiro, filósofos e intelectuais cristãos devem demonstrar mais autonomia – mais independência do resto do mundo filosófico. Segundo, filósofos cristãos devem mostrar integridade – integridade no sentido original da palavra, ser um inteiro. Talvez ‘integralidade’ fosse a melhor palavra aqui. E necessário aos dois há um terceiro: coragem cristã, ou ousadia, ou força, ou talvez auto-confiança cristã” (3).

O que quer dizer tudo isso? Significa, exatamente, a necessária coesão entre dois elementos que podem, à primeira vista, parecer opostos, mas são indissociáveis: ortodoxia e originalidade. Ora, de acordo com o senso comum, ser cristão é ser necessariamente reacionário, algo que se opõe à originalidade. Quem pensa assim não conhece a fundo as raízes do pensamento cristão.  O cristianismo, desde as suas origens, perseguido inicialmente pelos imperadores romanos, tem o que pode ser considerado de mais original e subversivo. E mesmo na era medieval, quando torna-se finalmente cultura, não perde sua força e originalidade. O elemento essencialmente sacro, os conteúdos da arte sacra, que se estendem à modernidade, a mística esponsal da era de ouro, a espiritualidade espanhola do século XVI, os mosteiros como centros que irradiam espiritualidade e cultura, tudo isso são conteúdos essencialmente originais da cultura cristã, que inundou o ocidente e alcançou muitos corações que contemplam o Cristo que é exaltado entre as nações. Ora, é necessário, aqui, que esses elementos sejam considerados como o que há de mais original e que se opõem ao espírito do secularismo, e esse reconhecimento e essa identidade são exatamente a ortodoxia.

É indispensável que o pensador e o cientista cristão, ciente dessa cultura do qual a sociedade está impregnada – mesmo tentando a ela resistir –, mantenha-se fiel às suas raízes de forma original e ortodoxa, pois a ortodoxia – diferente do fundamentalismo – é a originalidade. É necessário, pois, que o pensador e o cientista cristão percorra um caminho próprio, distante do secularismo, e que caminhe na aridez, mas que nessa aridez lance raízes fundamentadas em uma cultura que, por ser essencialmente bela, jamais deverá ser esquecida.

Referimo-nos aqui, evidentemente, ao caráter místico e espiritual do cristianismo.

É necessário que o teólogo cristão se questione em qual área aprofundará a sua teologia, pois o olhar do pensador e do cientista cristão é, necessariamente, um olhar teológico. O pensador e o cientista cristão necessita, antes de tudo, ser teólogo. É preciso que ele aprofunde o discernimento vocacional e se questione: em que área do pensamento aprofundarei a minha teologia? Pois é certo que a teologia bíblica e a teologia sistemática não são as únicas formas de se exercer a teologia. Não é um caminho obrigatório. Deve-se assim, o vocacionado, questionar, se realmente a sua teologia será voltada apenas para os que estão do lado de dentro da comunidade cristã, ou se não há, em sua vocação, algum pendor para a atuação evangelística no sentido de contribuição para a formação cultural cristã da sociedade. Ou seja, a teologia que ultrapasse o biblicismo, que fale uma língua que o mundo entenda e diga respeito não somente à Igreja, embora em sua base esteja sempre se direcionando à Igreja.


3. Vida acadêmica: da aridez e das consolações

Existe um caminho que é necessariamente o da solidão acadêmica e no qual se abraça a aridez não por conforto, mas por vocação. Trata-se de um caminho distante do mundo dos louvores, das mãos estendidas, em alegria, aos céus, e da doçura das consolações encontradas na comunidade. Um mundo mais próximo do que o cristão tem a dizer ao mundo na segunda-feira do que do que tem de receber da comunidade no domingo festivo. O mundo do pensador e do cientista cristão é um mundo de solidão e aridez necessários. Um mundo em que se caminha no deserto por amor a uma causa. É, esse pensador e cientista cristão, necessariamente, um idealista. Mas é também um realista. Ele tem em Deus a sua fonte de experiência mais concreta. E por causa dessa concretude, ele consegue, distante das consolações comunitárias, caminhar na aridez. Mas essa aridez e esse deserto serão também a sua verdadeira fonte de consolação.

Trata-se, aqui, da necessidade de ser capaz de extrair, do que é aparentemente árido e infértil, a consolação necessária, pois é caminhando na aridez do pensamento secular que encontrar-se-ão as bases para demolir tudo aquilo que inutilmente tentou erigir o mundo: um monumento aparentemente gigantesco, mas de bases frágeis, insuficientes para derrubar aquilo que a Igreja sabiamente construiu através dos séculos. Só conseguirá demolir essas estruturas, que perceberá como frágeis, se aventurar-se a conhecer profundamente o que o academicismo secular construiu com o passar dos tempos, em oposição à sólida filosofia da Igreja e ao pensamento teísta mais profundo.

A Igreja possui uma filosofia sólida, mas há ainda muita dispersão e diversidade de pensamentos. É preciso um conhecimento que atravesse todas essas filosofias para que alcance um pensamento, uma síntese ainda não encontrada. É necessário que o filósofo cristão caminhe na aridez, busque uma formação sólida e respeitável, aprofunde-se, especialize-se, conheça em profundidade as raízes que tecem as linhas das danças constantes das marionetes. Que conheça em profundidade também tudo o que foi produzido de sólida filosofia cristã e teísta. Trata-se de um engajamento constante, de um afastar-se das consolações dominicais e dos devocionais infantis.

Isso não significa que abandonará a espiritualidade, tampouco a comunidade, a Igreja. Não há sentido em fazer tudo isso deixando a Igreja; não é disso que estamos tratando aqui. Estamos tratando, antes, de uma solidão desconhecida, necessária e pouco compreendida, mas que não esteja demasiadamente distante da comunidade. É preciso estar alicerçado na comunidade, mas sem grandes projeções e apego. É necessário que se dedique à vida devocional, mas que não seja alicerçada em uma experiência infantil, mas em uma sólida leitura e caminhada de espiritualidade fundada nos místicos da Igreja.

Uma misteriosa solidão acompanha o vocacionado, tanto o místico quanto o filósofo. É indispensável aprender a caminhar sozinho e é necessário extrair a consolação dessa aridez. É preciso se adaptar a isso.

As consolações que brotam do Espírito Santo não têm fim. Elas se mostram renováveis, mesmo nos momentos mais desérticos, mesmo em meio à noite escura, a ditosa noite escura, conforme João da Cruz.

Depois de trilhar um longo caminho, adquirirá a independência e a fortaleza necessária para erigir um pensamento e uma ciência que tenham algo a dizer ao mundo. Esse é o nosso conselho e o nosso encorajamento: cristãos, formem-se em filosofia, formem-se em ciências. Busquem a especialização. Transformem o mundo.


Bibliografia

(1) CRAIG, William Lane, Quem Precisa da Apologética Cristã

(2) CRUZ, Anderson Francisco da, A Natureza da Igreja

(3) PLANTINGA, Alvin, Conselho aos Filósofos Cristãos